"O passado não morreu, sequer passou." (William Faulkner) Fernando baixava a porta de aço do botequim e olhou o gordo. Já havia reparado no homem durante o dia. Não parecia mendigo. Portava um jeito altivo de quem se equilibra tentando não esborrachar de vez na miséria. Fernando acenou para o gordo recebendo de volta um cumprimento simpático. - Não vais pra casa? - Assim que tudo isso passar. O gordo abraçou a mochila como se mostrasse que ali estava sua casa. Um objeto chama a atenção de Fernando: a ponta de uma escova de dente saindo pela brecha da mochila. Por que aquele gordo jogado na rua usava escova de dentes? O gordo sorriu com dentes perfeitos. Como aquele gordo conseguia manter dentes saudáveis? - Como te chamas? - Me tratam de gordo. Dá pra notar porque, não é? Fernando fez um gesto incentivando gordo a entrar no botequim. - Cá ajudava-me um rapaz... queres o serviço? - Faço qualquer coisa. Pode confiar em mim. - Tu me disseste que ias voltar a casa quando tudo passasse... a que te referias? - A gente fala tanta coisa e não se lembra depois. Evasivo, o gordo. Com o tempo, Fernando aprendeu que ele sempre respondia como se elaborasse uma charada, um jogo que só faz sentido para quem possui a chave do enigma. Estranho o gordo mas simpático a Fernando e isso bastava para que o desconhecido pudesse participar do cotidiano do português. - Acordas cedo, gordo? - Quase não durmo não. Uns sonhos esquisitos não me deixam dormir. Que sonhos atormentam gordo? Se Fernando acha difícil entender esse homem acordado; imagine espionar seus sonhos. Talvez os sonhos de gordo sejam semelhantes às suas frases. Sonhos que são entendidos por quem for o dono da chave do enigma. Gordo acorda cedo, levanta a porta de aço, prepara café, ferve leite e serve os fregueses de manhãzinha. Contrariando o peso daquele corpo, come pouco. Pão com margarina, de manhã. Arroz com feijão e batata, no almoço. Sopa, de noite. Nas horas de folga, se recolhe num pequeno cômodo nos fundos do bar. Fernando se pergunta como pode alguém ser tão gordo com hábitos de filósofo. Seria mais lógico ter corpo magro semelhante a Ghandi, figura que – na cabeça de Fernando – lembra um filósofo. - Tu trabalhas direito, gordo. - A gente faz o que pode. Para Fernando, gordo podia ficar o tempo que quisesse. No entanto, Celeste recriminava o marido pela hospitalidade. - Abres a casa a um homem que surgiu não se sabe donde? - Ah! Mulher... sou capaz de conhecer alguém só de olhar nos olhos. - Nos dias de hoje, tem se de olhar nos olhos, na carteira de identidade e, mesmo assim, fica difícil dar-se total confiança a alguém! Fernando atribuía essas censuras de Celeste ao gênio pouco receptivo da mulher. Desconfiada, mal-humorada e profundamente triste. Celeste vê perigo em qualquer coisa que se move e não pode identificar. Depois da morte do filho, piorara. Vive suspirando, diz ter câncer e chora na hora do almoço. O retrato de João Luiz – fardado de guarda-marinha – ocupa o mesmo espaço que os pastores adorando Nossa Senhora de Fátima, o centro da parede. - Manda esse homem embora! Ele traz mau-agouro! Escuta-me, homem de Deus! Ainda teremos outra desgraça. - Dorme, mulher! Sinto-me cansado quando vens com essas histórias... Histórias sobre o filho morto. Por qualquer motivo, Celeste contava coisas sobre João Luiz. O melhor aluno do primário. Com dez anos, escrevera uma redação elogiada pela professora. Com quinze, ganhara concurso na tevê respondendo sobre Marcílio Dias. Com vinte e oito morreu. - Encontraram o corpo no tombadilho do navio. - De quem estás a falar? - De quem poderia ser? Fazes cada pergunta! Esqueceste? - Estava a dormir... antes, falamos sobre gordo... - Gordo... gordo... aquilo ainda há de trazer outra desgraça a esta casa... No entanto, gordo estava longe das previsões sombrias de Celeste. Um mês e meio depois de sua chegada, aparentava boa sorte. Sorria com dentes bem-tratados, atendia a freguesia com empenho e se aproximava cada vez mais de Fernando. Entre os dois cresceu uma amizade tranqüila. Às vezes, conversavam horas trocando impressões sobre banalidades. A confiança de Fernando consentia confidências. - Só não me conformo com a morte do garoto.. - Você gostaria de ter ele de volta? - Ah! gordo... do mundo dos mortos.. não se volta. - Voltei de lá. Fernando faz cara de espanto. Gordo joga mais uma frase de efeito. É uma das suas muitas indecifráveis charadas. De onde tinha voltado? Com toda a certeza, não era do mesmo lugar habitado por João Luiz. Gordo tem carne, ossos, nervos, dentes perfeitos. Nem de longe, lembra um morto ou fantasma rondando a terra em penitência. - Estás a brincar, gordo! De que mundo falas? - Tá vendo esse caderno? Eu fico escrevendo nele porque tenho coisas demais na cabeça. Quanto mais escrevo; mais coisa aparece lá dentro. Tenho que manter a cabeça limpa senão volto ao mundo dos mortos. Gordo se levanta apertando o lápis na mão e acomodando o caderno no peito. Fernando percebe que esteve a um passo da chave do enigma. Todos têm um fantasma. Celeste e ele carregam o filho morto. Gordo tem o assombro maior rondando sua vida: o mundo dos mortos. Esse fantasma obriga o gordo a cumprir a tarefa de deslizar o lápis na folha de papel. Celeste está na cama com os olhos fixos na parede. - Acreditas que alguém possa voltar do mundo dos mortos? - Por que falas isso? A mão de Celeste segura firme o braço do marido. - Bobagens... coisas cá martelam-me a cabeça... - Não! Algum motivo tens! Diga-me! Pelo amor de Deus! Fernando se arrepende. Celeste associou sua pergunta a João Luiz, não fazia outra coisa na vida. Bastava simples menção à morte para elaborar lamentos pelo filho morto. Certa vez, uma vizinha levou Celeste num centro de mesa Kardecista onde diziam possuir o dom de contatar mortos. Ela freqüentou o grupo durante dias, semanas, meses... segundas e sextas saía de noite para tentar uma conversação com João Luiz. Embora possuindo fervor católico, segurava a mão dos integrantes da mesa num ritual que tantas vezes condenara. Nada! O filho não se manifestou. Era como se – até na mesa espírita – a morte de João Luiz tivesse um toque de irremediável. - Besteiras, mulher! Gordo disse-me coisas que não entendi! Não é o que pensas. - Esse gordo é um estorvo em tua vida. - Ele me ajuda muito. - Homem que não sabes a origem?! Sequer o nome... - Dorme, Celeste... - Ficas aí a fazer dupla com ele como se fossem o Gordo e o Magro. Fernando ri da comparação. Sempre fora magro e não engordara nem na idade quando dizem ser inevitável criar barriga sedentária. Nos tempos de menino, um cinema ambulante se instalou na praça da aldeia e, entre os filmes, gostara mais de um curta do Gordo e o Magro – ou o Estica e o Bucha, como chamavam a dupla em sua terra. O pensamento se volta ao Gordo enquanto tenta dormir. De que mundo dos mortos falara? Por que precisava manter a cabeça vazia? Que perigos existiam nas palavras? O amigo do Gordo adormeceu com a certeza de que ainda estava longe da chave do enigma. - Eu queria apagar a vida assim! Assim... como essa borracha apaga as letras do caderno! - Por que fazes isso, Gordo? Que te veio à cabeça? Mesmo Fernando, para quem gordo era inofensivo, sentiu receio assistindo aos gestos furiosos da borracha apagando o caderno. - Não adianta... a gente apaga as letras mas fica a marca do lápis no papel. Celeste veio ao bar alertada pelo grito do gordo e se mostrou ainda mais convicta de que ele representava um perigo. Gordo recolheu lápis, papel e borracha voltando para suas atividades como se nada houvesse acontecido. - Ele acabará contigo! Ele te apagará daquele jeito! - Celeste! A noite ao teu lado é um suplício! Sempre tens histórias... implicâncias... - Se tivesses a metade deste amor por João Luiz. A mulher gosta de acusar. Ela e sua amargura não perdoam ninguém. Por que Fernando não amara o filho? Essa acusação é totalmente sem propósito. Fernando se apegara a João Luiz desde que o filho era pequeno e viviam enclausurados num cômodo de porteiro. Ele sabia que essa não era a melhor infância para João Luiz, mas a única ao alcance de um zelador de edifício classe média tijucana. Celeste na improvisada cozinha, João Luiz na saletinha e Fernando circulando entre portaria e cômodo. Na medida em que o filho crescia, Fernando ia notando seu distanciamento dos outros meninos do prédio. Principalmente no Natal, João Luiz tornava-se mais arredio como se ficasse ferido ao receber presentes que eram sobras de apartamentos. - Gostei demais do meu filho, Celeste! Não me acuses! Por que essa vontade de me causar sofrimentos? - Falas da boca pra fora! Tu nunca derramaste uma lágrima por teu filho! Era o jeito dele. Sentia imensa tristeza mas a lágrima não descia. Os olhos ficavam secos mesmo com a dor cortando. Isso não significava que estava alheio ao sofrimento. O pai lutou para tirar João Luiz do cômodo de porteiro. Abriu o bar, se esborrachou no trabalho, custeou os estudos do filho. Com satisfação, inscreveu João Luiz no Clube Português. Nos domingos, o rapaz ia à piscina. Nos dias de festa – vestindo trajes típicos – destacava-se nas danças de Maria da Fonte e no Arraial do Santoinho. - Eu fiz de tudo por aquele menino, Celeste! Por que me acusas? - Não derramaste uma lágrima no dia da notícia. Nem depois! Nem nunca! Fernando não sabia chorar. Não chorou no dia da notícia porque não conseguiu. Ele amava João Luiz, mas não conseguiu chorar. Que pecado existe num pai que não chora um filho morto? - Tu tens gosto em machucar-me, Celeste. - Este estorvo que trouxeste pra dentro de casa será tua desgraça! Celeste quer magoar Fernando atacando o gordo. Ela não perdoa o homem que só teve utilidade quando lhe fez um filho. Depois do nascimento de João Luiz, Celeste apagou o marido. O filho morreu deixando um vazio e para que servia aquele homem ao seu lado na cama? Fernando servira para dar o filho e esse filho não existia mais. - As mulheres acabam com a gente... devagarinho, tiram nossas forças... dominam a gente. - Por que falas isso, gordo? - Eu sei que é assim. Fernando sabe que não adianta seguir conversando. Gordo lançou a frase e caiu no silêncio. Talvez, os sonhos pudessem revelar alguma coisa, mas Fernando não tem acesso aos sonhos de gordo. Fernando abre a porta do bar. Todas as manhãs iriam encontrá-lo abrindo o botequim e sendo devorado por Celeste. Cada noite ao lado da mulher representa um pedaço que vai embora. Então, vem a vontade de dividir isso. - Sou fraco! Tu sabes que ela me vence. Era isso que querias dizer com aquela história de mulher acabar com um homem, não é? - Parece que ainda não acostumou comigo! Eu falo coisas e... elas vão embora! Não consigo guardar muita coisa na cabeça. - Tu mentes, gordo! Eu sei que mentes! Tu não apagas as lembranças como se fossem letras num caderno! Pela primeira vez, Fernando acuou o gordo. Pela primeira vez, ele sente que avança no terreno indecifrável do amigo. - Já percebeste que posso descobrir-te... - Me deixa em paz! Não incomodo ninguém! As pessoas não perdoam o segredo. Fernando mesmo não se perdoava. Ele e Celeste guardam um segredo. Por isso, ela se sentia ameaçada pelo marido. Por isso, devora pedaços de Fernando. Celeste não tem um cúmplice, mas a incômoda prova da verdade. - Gordo, se existe segredo assombrando tua vida, é problema teu! Não guardo mais segredo algum! Provo-te que não há cá em meu peito... medo. Celeste! Ó Celeste! Quero falar-te! A mulher veio espantada com o tom de voz do marido. - Gordo, és testemunha da minha libertação! Tu entraste na minha vida para testemunhar minha libertação. Ela não gosta de ti por isso. - Perdeste o senso, homem?! Fernando começa a falar do filho morto. Não de forma culpada ou com remorso ou falta de entendimento. Ele fala de João Luiz com a segurança de quem sabe onde pisa, de quem é capaz de andar de olhos fechados por uma sala porque conhece a disposição dos móveis. - Ele se matou! Um infeliz e matou-se! Não tinha a perfeição que essa mulher pinta! - Falas assim diante de um estranho?! Perdeste o senso... és parvo! - Nunca tive tanto a cabeça no lugar, mulher! Estou a tirar um peso do peito porque quero ser feliz! Tu vives uma mentira e queres arrastar-me junto! Fernando vomita uma história de João Luiz metido com roubo de armas na corporação, sobre um oficial superior que jogara a responsabilidade em cima dos de menor graduação. - Tu falas sem medir conseqüências! Isso nunca foi provado! Foi tudo uma farsa! Farsa! - Farsa é a vida que insistes em dividir comigo! Foram as últimas palavras trocadas entre Celeste e Fernando. Fernando mudou, aparentava felicidade junto aos fregueses, conversando com gordo, rindo de uma ou outra piada. Celeste se trancava no quarto; o marido dormia na sala. Os dois dividiram a casa em territórios bem delimitados. As lembranças de João Luiz ficaram no quarto de Celeste. Fernando retirou da gaveta um velho quadro do Benfica (com Eusébio e companhia) e pregou na parede substituindo João Luiz fotografado no uniforme de guarda-marinha. - É bom ter a liberdade de selecionar lembranças. - Gordo, sinto-me livre mas não feliz. Percebes? O amigo não deu resposta, na cara; uma expressão conhecida por Fernando. Acontecia quando o passado começava a ameaçar. Num Dia de Finados, gordo voltou apavorado de uma caminhada falando que tinha certeza de que fora visto. Mas quem vira o gordo? Quem era essa ameaça que podia levá-lo? Gordo se fechou em silêncio. Agora, ele tem a mesma expressão daquele Dia de Finados. - Alguém que não podia te viu? - São esses sonhos... quando ficam desse jeito... eu sei que estou perdido... vão me descobrir. Desta vez, não me entrego. Ninguém me leva daqui! Os sonhos de gordo têm qualquer coisa de antecipação da realidade. Em determinadas épocas, gordo conseguia limpar a cabeça esvaziando as imagens que o perseguiam. No entanto, atualmente, estão nítidas demais e gordo sabe que será descoberto em questão de pouco tempo. Os sonhos – cada vez mais nítidos – avisam que a chave do enigma está chegando. - Você conseguiu se libertar... não vou ter a mesma sorte. - Tu precisas tentar, homem! - Não vou ter a mesma sorte. Gordo caiu com febre, teve delírios. À cabeceira do amigo, Fernando ia juntando frases perdidas, descrições de sonhos... - Descobri tudo! - Você já sabe, não é? - Vou te ajudar! Confia em mim! - Ela é mais forte! Ela e eles não vão me perdoar nunca! E Fernando dividiu o segredo com o camarada como quem divide a alimentação escassa em uma casa pobre, com a certeza de que um poderia tornar o outro mais feliz. No entanto, o inimigo forte e sem capacidade de perdoar; é quase invencível. - Vim buscar o Valdomiro. Ela não escondia a postura autoritária pronunciando a razão de sua vinda ao bar. - Ele sempre desaparece, eu encontro. Dessa vez, demorou mais um pouco, mas encontrei ele. - Por favor! Não o leve agora. Garanto-lhe que ele está bem. - Não posso! Vou levar meu marido igual sempre fiz. Dois homens apareceram na porta. Um pouco alterada, a mulher pede que tenham calma garantindo que resolvera tudo. Fernando quer negociar, alega que gordo encontrara uma casa... - O senhor não entende? Tenho responsabilidades! Não posso deixar um homem violento solto no mundo! A mulher quer levar gordo para o lugar indefinido que ele denominara mundo dos mortos. Aquele mundo do qual gordo afirmara ter voltado e Celeste – incapaz de um vôo maior – confundira com o lugar onde João Luiz vagava. Obcecada pelo filho morto, era incapaz de compreender qualquer morte mais dolorosa que o corpo de João Luiz descendo à sepultura. - Entendo sua boa-vontade, mas meu marido é caso perdido, precisa de internação... não pode conviver com os outros. Mais do que preocupação ou carinho; a mulher transmite dominação de quem decidiu o destino do semelhante. - Ele tacou fogo na casa! Nosso filho estava lá! O senhor entende isso? Havia um morto. Por que as pessoas têm essa tendência de se deixar dominar pelos mortos? Por que carregam esta legião de mortos como um cão que arrasta sua coleira pelo chão? São iguais a um caderno que, mesmo depois de apagado, guarda a marca do lápis. Os lances assumem proporções dramáticas na voz da mulher. Um recém-nascido no berço enquanto o louco invoca forças desconhecidas que o fogo tem o poder de materializar. A casa lambeu deixando um morto na vida de gordo. Por isso, ele seria castigado. É um jogo que Fernando conhece porque Celeste joga sujo assim também. Ela quer que Fernando pague pelo crime do filho que não pode ser impuro já que foi expelido por sua barriga. O castigo de Fernando representa a purificação de João Luiz. Gordo, igualmente, deve à sua mulher um crime. Por um momento, ultrapassara o limite da razão e isso lhe custara o filho perdido e, pior, a condenação ao mundo dos mortos. Fernando caminha na frente acompanhado pela mulher e os dois homens com a esperança de que gordo fugisse arrumando os poucos pertences na mochila. A escova de dentes, o lápis e os cadernos. Seria uma fuga temporária porque aquela mulher jamais deixaria de lado a perseguição. Era essa a esperança de Fernando ao entrar no cômodo... Gordo se enforcara com o fio de ferro elétrico. As folhas dos cadernos estavam preenchidas com a letra miúda, relatos de sonhos que não voltariam mais para assombrar a vida do gordo. Celeste colocou o rosto na porta do cômodo. Fernando encarou a mulher que não pôde deixar de perceber duas lágrimas descendo de seus olhos. Nota do Editor: João C. Viegas é jornalista.
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