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Contos
28/08/2008 - 07h12
Agora é sua vez...
Marco Albertim
 

O tenente entrou no bar com oito soldados. A dona já o esperava. Os dois se sentaram em volta de uma mesa distante do balcão. Os soldados, em pé, na beira do balcão. O tenente se sentara de costas, de modo a não ver algum soldado bebendo. Era dia de eleição. A polícia teria que fazer a segurança dos votos. Um soldado pediu uma bebida, meio copo de aguardente; para tomar de uma vez, não demorar com doses pequenas, arrastadas.

Noutra mesa, sem ouvir a conversa do tenente com a dona do restaurante, seis rapazes bebiam. A lei seca duraria até as seis da noite, com o fim da votação. Mas a dona, com o apoio da polícia, comerciava sem receios. José Luiz, um dos rapazes, estranhou o soldado bebendo, fardado, em serviço. Era o que tinha bebido mais, gesticulando e falando com estrépito. Chamou, ele, o soldado, para sentar-se à mesa, compartilhar a bebida. O soldado recusa o convite, acenando com a mão. Zito, ao lado de José Luiz, insiste em voz alta para que o tenente veja o soldado bebendo.

O tenente conhecia seus homens; sentara-se de costas para eles, para não se acumpliciar com os olhos bem abertos para o balcão onde a bebida fora servida. Ouviu a insistência de Zito, não virou o rosto; olhou, oblíquo, para o lado, com o ouvido atento. O soldado, quando olhara para Zito, percebera o trejeito minucioso na cabeça do tenente. Sabia que não seria punido nem advertido, e respondeu de modo a seguir o ricto do tenente:
- Não estou bebendo. – Já bebera o suficiente para encher-se de divisas na farda, inda que não as tivesse.
– Se eu tivesse de beber, não seria com qualquer um.

Zito bebera mais que o soldado, e sentia-se com privilégios pelo fato de não usar fardas em dias de eleição.
- Não sou qualquer um. – Não se mostrou valente, mas não quis ser objeto da zombaria dos amigos, que decerto o tomariam por covarde caso não reagisse.

O soldado viu a orelha do tenente se pôr em pé, vermelha. Mandou Zito repetir a frase.
- É isso mesmo, é para você ouvir... – cresceu o tom da voz, Zito.
O soldado sacou a arma e foi em direção a ele. Àquela altura, a cozinheira saíra da cozinha para assistir ao tumulto. Os soldados sacaram cada um a sua arma. O tenente pôs-se de pé, sem tirar o revólver do coldre.

O primeiro a atirar foi outro amigo de Zito, Manoelzinho; ele tirara a arma da cintura quando o soldado dissera que não bebia com qualquer um. Atingiu o soldado no peito, matou-o.
O bar ficou vazio. O tenente, com a arma na mão, pôs-se à frente da proprietária.

Piolho, na mesa de Manoelzinho, não tinha revólver; viu a cozinheira voltar correndo para a cozinha, e escondeu-se sob o balcão de cimento. Antes de se abaixar, vê um de seus amigos, Chicão, ser atingido no abdome e morrer. Piolho corre para a cozinha, pula a janela para o lado de fora e pisa no esgoto. Vai à esquina dos fundos, esgueira a cabeça para olhar para frente, onde o carro da polícia ficara estacionado. Vê dois soldados, cada um empunhando uma metralhadora. Corre para a caatinga. Os soldados ouvem o ruído de suas botas quebrando o mato seco. Avistam-no. Piolho se adianta na carreira. Os soldados correm atrás dele. Com a farda de tecido grosso e o peso das metralhadoras, ficam para trás. Dez minutos depois, Piolho pára e ouve o barulho dos galhos quebrando sob o fogo das metralhadoras.

Segue em frente, sem saber para onde está indo; corta-se nos espinhos da jurema, da macambira rasteira, do cacto facheiro e do mandacaru; queima-se nas folhas da mandioca-brava, rala os braços, o rosto. Uma hora depois, o silêncio. Estava sem camisa, o corpo ensangüentado, a calça rasgada. Depois de uma parada, põe-se a caminhar à procura de alguma casa. No meio da caatinga, avista uma luz de candeeiro num terraço de uma casa ainda distante. Aproximou-se. A porta estava aberta. Ouve latidos. Os cachorros já o tinham notado; não eram cães de ataque, pressentiram o estranho e latiam.

Sob a luz do candeeiro, aparece um homem, o dono da casa:
- Quem vem lá?
Piolho quer água. O homem não tem feição de gente ruim.
- O senhor não me conhece. Estou em busca de ajuda, em paz.

O homem manda os cachorros calarem, se afastarem. Do alto do alpendre, segurando uma espingarda, ordena a Piolho que fale do local de onde viera.
- Desculpe por estar sem camisa. Sei que não posso entrar em sua casa.
- O que o traz aqui?
- Vi um tiroteio em Agrestina. Com medo de ser confundido, corri. Quero água e que me diga onde estou.
O homem responde:
- Não sou de confusão. Dou-lhe a água e depois vá embora. Você está em Calango Mole.

A mulher e os dois filhos já estavam no alpendre. Ela foi buscar água, serviu a Piolho num caneco de flandre.
Depois que Piolho matou a sede, o homem resolveu perguntar mais:
- Onde foi a confusão e quem estava lá?
- Foi num restaurante na beira da rodovia. Mas eu não conhecia ninguém... Posso sentar no meio-fio?

O homem fica calado, ajuizando-o. Quando viu Piolho sangrando na cintura, nos peitos, no rosto, deixou a espingarda de lado, encostada na parede do terraço, perto de si.
- Onde fica a rodovia principal? É perto? – insistiu Piolho, sentado no meio-feio.
- Não. Se for para Caruaru, não é longe.
- Me arranchar aqui eu não posso. O senhor pode mandar alguém me levar até a rodovia?

Passava das oito da noite. A frente da casa fora coberta pela luz abundante que vinha da lua.
- A esta hora, não!
A mulher, até ali sem dar um pio, resolve intervir:
- Por que não manda Leuzinho levar ele na garupa do cavalo?
- Pra meu filho levar bala!...
- Então manda Leuzinho ir na casa de compadre Antônio, trazer o carro de aluguel. O carro pode levar ele até Caruaru.
- Sendo assim, é melhor – assentiu o homem.

Antes que o cavalo fosse selado, Leuzinho foi chamado para conversar com o pai em particular; atrás, na cozinha. Piolho assustou-se, com medo de um complô; depois, insistindo no respeito aos códigos da caatinga, disse que ia urinar; levantou-se e voltou para a caatinga. Embrenhou-se no mato seco, deixando a casa do homem para trás.

Andando ligeiro, voltou a se cansar. À meia-noite, parou, encostado num rochedo ao pé de uma serrota. Resolveu dormir, não dormiu, teve agonia por toda a madrugada.

Às cinco da manhã, ouviu um ruído de chocalhos, sentiu um cheiro forte de estrume de bois. Procurou a boiada, talvez conseguisse ajuda com o boiadeiro. Andou pouco mais de meia légua, seguindo a trilha deixada pelos bois. Avistou duas dezenas de bois e vacas, pastando na margem de um barreiro. Um menino com pouco mais de 14 anos, com um relho numa das mãos, guardava o gado. Surpreendeu-se quando viu Piolho andando em sua direção, amedrontou-se quando o viu se abaixar para beber a água do barreiro. Piolho perguntou de quem era o gado.
- É do meu pai – respondeu o menino, intimidado.
- O gado vai ficar solto ou vai voltar para o cercado?
- Só vou pra casa às onze horas.
- Sua casa é perto ou longe?
- Só vou pra casa às onze horas – insistiu o menino, bosquejando resistência.
Vendo o sangue mal coagulado no corpo de Piolho, perguntou:
- O que foi isso?

Não quis responder, Piolho. Mas ali havia gato-do-mato. O menino se picara de curiosidade por bichos. Havia novilhos no meio das vacas, vulneráveis a ataques de felinos. O menino ainda não se dera conta de mortes por tiros de revólveres ou de metralhadoras. Piolho disse que estava numa caçada, perdeu-se, entrou no mato e cortou-se. O menino pungiu-se, sugeriu que poderiam ir para sua casa antes das onze horas.
- Não. Vou descansar – disse Piolho. O menino creu que de fato ele fora atacado por alguma fera do mato.

Piolho deitou-se na sombra de um pé de algaroba.
Ao meio-dia, o garoto começou a tanger o gado; poderia ter saído às onze, mas preferiu manter-se refém da própria palavra do que ser julgado mentiroso por um estranho ferido, doente na caatinga.
Piolho levantou-se, caminhou no meio do gado, com medo de ser atingido por um tiro.

Caminharam por uma hora, sob o sol do meio do dia. As feridas no corpo de Piolho ardiam, queimavam; o rosto suado tinha bolhas, cortes, arranhões. O que permanecera inteiro em seu corpo era o par de botas, inda que enlameado.

O menino, familiar de mugidos, de marradas de bois teimosos, perdeu o susto; tinha mais inquirições a fazer. Mas vendo Piolho tão estropiado, quis poupar-lhe o fôlego.

Uma hora depois, chegaram a casa. O gado foi tangido para dentro do curral. Toda a família estava no terraço. Ninguém almoçara, esperando o menino. Quando ele subiu o primeiro batente, foi abraçado pela mãe. O pai estava de lado, junto com os outros filhos.

Piolho estranhou. Pai, mãe e filhos olhando para ele como se tivessem presenciado o tiroteio. O pai, com o olhar duro, mirou Piolho; podia tê-lo odiado, depois do relato que o tenente da polícia lhe fizera. Mas viu o filho inteiro, o gado entrar completo no cercado; teve dúvidas do que ouvira sobre Piolho.
- Agora é a sua vez, seu cabra...

A voz saíra do lado da casa, do canto do terraço de pouco uso da família.
Piolho, com os olhos encandeados pelo sol, distinguiu com esforço a farda escura do tenente que comandara a guarnição. Atrás dele, Piolho, apareceram soldados vindos de um lado e do outro.


Nota do Editor: Marco Albertim é jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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