Mais um ano, mais uma epidemia de dengue em diversos estados do país. No Rio de Janeiro, os números têm impressionado, com mais de cem mortes e um total superior a 150 mil casos desde janeiro. Apenas na capital, foram mais de 80 mil casos. Em São Paulo, a preocupação maior é em relação ao crescimento do número de casos em cidades do interior. Em Mogi-Guaçu, por exemplo, foram confirmados 270 casos no primeiro trimestre do ano, número próximo do total de registros da doença na cidade em todo o ano passado (288 casos). Araraquara teve cerca de mil casos até abril – em todo o ano passado, foram 355. Enquanto se discutem os motivos que levaram o problema a tamanha dimensão, Márcia de Freitas Lenzi, tecnologista sênior do Departamento de Ciências Biológicas da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz, aponta que culpar a população pela epidemia de dengue é, em parte, uma saída política para justificar a falha no planejamento e execução das ações de controle e assistência. Em tese de doutorado intitulada “As invisibilidades da dengue: um olhar sobre suas representações em uma favela do município do Rio de Janeiro – retratos de uma vulnerabilidade”, Márcia analisou a doença a partir do comportamento da população e da qualidade da informação sobre a prevenção a ela oferecida. A pesquisa para a tese foi desenvolvida junto a um grupo de moradores do Complexo de Favelas de Manguinhos, localizado em uma das regiões da cidade do Rio de Janeiro com maior foco da doença. Depois de analisar os folhetos distribuídos nas últimas campanhas de combate à dengue e o conhecimento que esses moradores tinham sobre a doença, a pesquisadora constatou que, apesar do conjunto de dados divulgados sobre a endemia, não houve preocupação, por parte dos órgãos governamentais, em saber que informações são mais ou menos conhecidas, como elas são recebidas pelo público e quais as dificuldades para colocá-las em prática ou passá-las adiante. Embora existam dezenas de pesquisas sobre o vírus e o vetor da dengue, ainda são poucos os estudos comportamentais relacionados à endemia. Em entrevista à Agência FAPESP, a autora do trabalho fala sobre a responsabilidade do governo em gerir informação e educação em saúde e do papel da população no processo de prevenção, e alerta para o uso indevido de medicação. Agência FAPESP – Quais são as principais causas que podem ser atribuídas por conta de diversos locais do país terem que enfrentar nova epidemia da dengue? Márcia Lenzi – Existem vários aspectos a serem considerados. A culpabilização da população é, em parte, uma saída política para justificar a falha no planejamento e execução das ações de controle e assistência. Pode-se perceber que existem vários aspectos que dificultam a participação efetiva da população no combate à dengue, como, por exemplo, a falta de informações importantes para compor um cenário realista sobre a doença e também fatores sociais graves, como baixo nível de escolaridade. Agência FAPESP – Isso foi verificado no local em que a senhora pesquisou, o Complexo de Favelas de Manguinhos? Márcia Lenzi – A região que investiguei apresenta um índice de analfabetismo de 18%. Ali, o fornecimento de serviços básicos como água e coleta de lixo é ineficiente. Acredito que culpa não é o termo a ser aplicado, mas sim responsabilidade e parceria. Entretanto, para isso, é necessário criar condições possíveis para uma participação efetiva da população nesse processo, por meio de informações bem planejadas e constantemente divulgadas, principalmente no período de baixa incidência. Com isso, seria possível construir um processo educativo, aliado sempre a ações de controle por parte das secretarias municipais. Agência FAPESP – As informações veiculadas pelas campanhas são sempre centradas no cuidado com os reservatórios domiciliares. Praticamente toda a população sabe que se deve ter cuidado com a água parada, senão o mosquito prolifera. Apesar disso, todos os anos há alta incidência da doença. De que outras informações a população carece? Márcia Lenzi – Posso citar, como exemplo, a ligação que se faz entre o mosquito e ambientes insalubres ou de mata. As pessoas acreditam que em ambientes limpos não há a reprodução de mosquitos, ou seja, elas pensam que uma casa bem cuidada dificilmente teria Aedes aegypti. A falta do conhecimento sobre o ciclo do mosquito – sua reprodução em água limpa, de larva até o estágio de alado – poderia ajudar a esclarecer esse aspecto. Qualquer grupo sabe de cor as informações veiculadas pelas campanhas, que são centradas no cuidado com reservatórios domiciliares desde 1986, quando ocorreu a primeira epidemia no Rio de Janeiro, causada pelo vírus de tipo 1. Porém, existem subjetividades importantes que precisam ser trabalhadas nas campanhas, para tornar as informações mais efetivas. Agência FAPESP – Sua pesquisa também destaca a importância do uso correto de medicação. Márcia Lenzi – Sim. Outro grave problema é a banalização do paracetamol, constantemente citado como ideal para tratamento da dengue e tomado sem prescrição médica, sem conhecimento dos desdobramentos que esse tipo de atitude possa ter. Em relação à febre hemorrágica de dengue, também não existe informação suficiente para a população. Deveria haver, por obrigação, alertas sobre os sintomas de risco, o que poderia salvar vidas. No estudo, a população somente caracteriza a dengue como hemorrágica se houver perda visível de sangue ou hemorragia. Agência FAPESP – Qual o papel do Estado no processo de informar e educar? Márcia Lenzi – Não há estudo avaliativo sobre o tema “informação e educação” que componha qualquer ação preventiva relacionada a endemias existentes no Brasil. Na mídia, podemos observar, esporadicamente, campanhas de prevenção à Aids e à dengue, que são as mais veiculadas. Entretanto, não se sabe que tipo de informação vai mais ao encontro das representações que a população tem sobre essas doenças. O Estado tem a obrigação de garantir acesso aos serviços de saúde e à informação, permitindo que o cidadão tenha conhecimentos sobre etiologia, sintomatologia, tratamento e formas de prevenção.
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