Passava de meio dia quando Joana acordou. Com a visão embaçada da noite de sono e sentindo o corpo pesado, ela notou que o abajur, cuja haste de madeira fora pintada de vermelho-sangue e a cúpula aramada feita de cetim florido, estava ligado. O objeto havia sido posto cuidadosamente em cima de livros empilhados, próximo à cama. Tencionava facilitar a leitura enquanto estivesse deitada. Mas, desde então, nem livro nem abajur foram tocados. Na madrugada anterior, Joana acordou inúmeras vezes. Num desses instantes, uma força impiedosa a privara de pegar no sono. Ao mesmo tempo, a sensação confusa incitava-a ao adormecimento, como se quisesse retomar sonhos fragmentados. Da cama Joana notara que o que iluminava o quarto era um único risco de luz quente e amarelado, que saía de uma fresta da cortina da janela; passava pelo chão onde estavam os livros, pela parede branca no canto direito da cama, e findava no teto. Era uma claridade suficiente para impedir que ela voltasse a dormir. Pensou em levantar para tomar um banho e retirar o suor que umedecia os lençóis de cor bege embaixo de suas costas. Passou a mão pela testa molhada, levantou e pegou a toalha de banho de tom amarelo pardacento. Ao entrar no banheiro, Joana manteve a cabeça baixa. Sentia um estranho temor. Não queria olhar para o espelho e vê-lo refletir sua cara envelhecida. Não foi preciso. Antes de terminar de amarrar os cabelos pretos, o interfone tocou. - Merda! - disse ela. Depois, caminhou lentamente até a cozinha. O interfone já estava na terceira chamada. - Oi! - disse, secamente. - Joana, boa tarde, é seu Antônio! É que sua irmã, que está aqui, deseja falar com a senhora - informou o porteiro. - Que irmã? - perguntou Joana ainda sonolenta. - Não sei não Dona Joana; a senhora me desculpe, mas é que ela disse que é sua irmã - completou o porteiro. Joana encerrou a conversa intuindo saber do que se tratava, mas, ainda assim, sentia uma dúvida ansiosa: - Meus Deus! Tudo bem, seu Antônio, pede para ela esperar um pouco. Me dá um tempo que estou descendo - finalizou. Abriu a porta. Foi quando se deparou com quem não imaginava estar ali. Pelo menos não naquele formato. Acabou fechando a porta novamente, como que em um instinto de defesa, pois esperava que a visita estivesse esperando no hall do prédio. - Abre Joana! Abre! Você sabe muito bem quem está aqui - disse a visita, impetuosamente. Do lado de fora do apartamento, havia um silêncio perturbador. Um silêncio que tomava todo o corredor do quinto andar do edifício. Mas tal silêncio voltou a ser quebrado quando a informada irmã de Joana insistiu: - Vim aqui porque não dava mais pra ficar sem vê-la. Aliás, não é preciso esconder mais nada. Nunca foi. Vamos, abre logo a merda desta porta! - disse. O pedido foi prontamente atendido. E a impetuosidade e um aparente nervosismo da visita foram substituídos por dois suaves passos. Já dentro do apartamento, parou bem diante de Joana, fitando-a ao final do segundo passo. - Faz mais de três anos que não nos vemos, não é isso? Pensei que nesse tempo já estivesse sabendo. Não esperava essa sua reação - disse a visita, pausadamente. - Não sabia que isso tinha acontecido com você. Desde que papai morreu, há quase um ano, não tive notícias suas - disse Joana, perguntando, em seguida: - Mas como é seu nome agora? - Paula. - Desde quando? - inquiriu. - Não vai me convidar para entrar? - disse Paula, interrompendo, habilmente, o questionamento de sua irmã. Depois, caminhou em direção à cozinha. Joana a acompanhou e puxou um dos quatro bancos da mesa que estava à pouquíssima distância da parede, e sentou. Paula tinha cabelos ruivos, unhas pintadas de vermelho e usava um vestido florido. Nas pálpebras, uma sombra branca. Calçava sapatos com saltos altos, de cor azul. Eram eles que chamavam a atenção de Joana. Sentada no banco da cozinha, ela fitava-os. Surpreendia-se com a ousadia da irmã em usar tais sapatos. Sabia que eles, com aquela roupa, a tornavam uma bicha ainda mais bonita. Paula passava as unhas sobre a superfície áspera da pia de mármore negro. Atrás, quase na altura de sua cabeça, havia um armário de tom azul claro, instalado em sentido horizontal. Colheres, panelas e algumas canecas ficavam penduradas entre o armário e a pia. A cozinha tinha uma arrumação impecável. - O que está acontecendo com você? - perguntou Paula. - Nada! - respondeu Joana. E, depois, foi direto ao assunto: - Mas como foi essa... - demonstrando dificuldades em assimilar aquele nome - ...essa mudança, Paula? - completou. - Vamos! Me diga logo o que está acontecendo, Joana? - gritou. - Nada, já disse. Nada! - disse Joana, em tom exasperado. - Você desaparece; sai daqui como Pedro e volta como Paula. Desculpa! Não quero falar desse modo com você. - completou. Na verdade, Joana sabia que existia a mágoa pelo sumiço repentino do irmão, mas não queria aquele tom acusativo. Não naquele momento. E retomou: - Papai ficou dois anos no hospital até morrer; porque não apareceu para visitá-lo nem foi ao seu enterro? - Eu tinha que viver minha vida. Tinha minha operação; era meu grande sonho. Cedo ou tarde, sabia que ia acontecer - respondeu Paula, justificando-se. - Mas eu não tenho nada. Estou bem! - voltou a dizer Joana, num tom de voz pueril, parecendo reivindicar à irmã que continuasse a ser interrogada. Da pia, Paula avistou, no final do corredor de onde era possível ver o quarto de Joana, que o abajur estava ligado. Em cima dos livros viu um porta-retrato com a foto de seu pai. Só havia ele. Caminhou até o local, mas, antes de pegar a foto, esbarrou nos livros. O abajur caiu e rolou pelo chão. Paula, então, assustou-se ao descobrir que, atrás dele, havia dezenas de comprimidos para dormir; algumas embalagens dos medicamentos ainda estavam fechadas. Mas para que não fosse flagrada, tratou de colocar rapidamente o abajur no lugar, antes que a irmã entrasse no quarto. Sentia que, ali atrás, estariam as respostas para suas perguntas. Mas decidiu não revelar a descoberta. - Por que está fuçando minhas coisas?! Como chega aqui e vai mexendo assim! - gritou Joana da cozinha, fora de si. Quando entrou no quarto, sua irmã estava sentada sobre a cama, com a foto do pai na mão. Joana, então, sentou ao lado de Paula, e disparou: - Foi desesperador depois que eu o perdi definitivamente. Mas enquanto estava aqui, acho que era pior. Não nos entendíamos. Ele me cobrava um filho, mas não conseguia. Não conseguia. Acho que faz mais de um mês que pedi para que ele deixasse minha vida; e agora não consigo dormir nesta casa sozinha. Nem mais um dia. Ontem de madrugada, acordei pra ligar o abajur, pois senti muito medo; não achei que fosse conseguir acordar esta manhã. Mas que bom que você chegou! É que tenho me sentido vazia, sem alma, sabe?! - Mas de quem você está falando? - perguntou Paula. Joana olhou fixamente para a janela. Só agora havia notado que o que iluminava o quarto ainda era aquele risco quente de luz que saía de uma fresta da cortina. Ela, então, reclinou lentamente o corpo e decidiu desligar o abajur. Foi quando notou que os remédios não estavam mais atrás dele. De súbito, e num impulso quase libertador, levantou-se e decidiu abrir a janela. Nota do Editor: Fabrício Fernandes é jornalista.
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