Chegou o sabadão. O telefone toca repetidas vezes, mas Solange não quer atender. A cabeça dói, os olhos lacrimejam, um horror. De tanto trim-trim na cabeça e gritos da mãe, resolve atender o impaciente: - Aaaalô – com a voz mais slow motion já ouvida na Terra. - Sola, tô passando aí em quinze minutos! Tututututututututu – lá se foi a ligação. - Mas... Não houve tempo de terminar a frase. Ou melhor, de começá-la. Ah, pouco importava quem quer que fosse a pessoa do outro lado ou o que queria; o mau-humor estava reinando no quarto de Solange. De pijamas às cinco e vinte e cinco da tarde, que não tirara o dia inteiro, a moçoila ajeita as pantufas nos pés e coça o bumbum. A cabeça lateja e lateja. - Hoje não tô pra ninguém, cama... Alguém entra arrombando a porta. - Sola, Solinha do meu coração...! Anely enforca Solange na tentativa de dar-lhe um abraço. Solange fica sem ar e se joga de cabeça na poltroninha rosa próxima à penteadeira. As duas caem no carpete e quase se machucam. A cabeça de Solange, a essas horas, não apenas latejava, mas doía de verdade. O “galo” cantou na testa da garota. - Que diabos! – Solange balança os braços com raiva. - Eita lelê... que bicho te mordeu, mulher?! - Cala essa boca, Anely... já não me bastam meus problemas e você invade o meu quarto, me derruba e ainda fica gritando na minha orelha? Tenha dó! Anely faz um bico e abaixa a cabeça, com dois galos enormes na testa. - Me desculpa... é a euforia de sábado. É normal, você sabe... - Ó, vou te desculpar desta vez, mas que minha porta nunca mais seja arrombada deste jeito. Tá louco, viu! Não sei porquê você é assim. Hoje estou com uma baita dor de cabeça, não vi a cor do sol ainda e você me apronta. Olha este galo aqui, tá vendo? Agora mesmo é que não saio na rua! Uiii! - Snif, snif... sniiiiiiif... De rabo-de-olho, Solange percebe que a amiga soluça baixinho, cabisbaixa. Senta na quina da cama, com as mãos entre os joelhos. - Vim te buscar para ir ao cinema... hoje é a estréia do filme do Grad Fitt com a Anfelita Jallie. Ia pagar sua entrada porque hoje é o seu ani... - Não termina, não termina!! Pelo amor de Deus, não terminaaaa... - Mas hoje é o seu aniversário! - Mandei não terminar! Ai, minha cabeça! - Dia de aniversário deve ser um dia de festa, não dia de vestir este pijama horroroso aí. - Veja lá como fala do meu pijama! - E é dia de pentear os cabelos! -Arrrgh... - E também é dia de escovar os dentes como nunca! Que bafo, Jesus! - Vem aqui, agora – Solange tenta agarrar a cabeça de Anely, que sai correndo. As duas começam a dar voltas em torno da poltrona. - Peraí. Peraíiii. - Você me tira do sério! - Vamos conversar. - Depois que você levar o que merece!! Anely pára. Solange bufa e seca a testa molhada de suor. - Amiga, hoje é seu aniversário. Uma data linda, 18 anos de existência. - Este é o problema! - Já fiz 19 e estou super feliz! - Mas eu estou triste hoje... 18 anos! Pra quê? - Vamos lá... quero te dar os parabéns. Me dá um abraço, vai. - Não vou conseguir, você está muito gorda, Anely. - Olha, não seja ingrata. São 19 anos de excesso, viu, excesso de gostosura. As duas ficam de braços dados, tentando se abraçar sobre a barriguinha saliente de Anely. O celular de Solange toca. - Quem? A Anely? Tá aqui sim. Tá. Fala com ela. - É ela. Se vamos? Vamos, sim. De pijaminha da She-ha? Quiá, quiá, pode ser. - O que foi? Vamos aonde? - Se troca pra gente sair. - Não quero deixar este quarto hoje. 18 anos de... - Blá, blá, blá. Onde ficam suas blusinhas? Nesta porta? - Nãaaaaao abr...!! Bum! Cataploft! - Quem mandou mexer aí?? - De onde você tirou tantos brinquedos?? - São meus... desde que nasci. Há 18 anos ganhava meu primeiro patinho de borracha. - Meu Deus do céu! Estou perplexa com você! Patinho de borracha! Me parece que aqui há mais de quarenta bonecas... quase todas intactas... olha ali, uma que nem foi tirada da caixa! - Sempre tive de tudo. Mais do que precisava. Mas o que quero mesmo, isto não tenho. Anely pega no colo uma boneca-bebê. - Mas o que você não tem, menina? - Amigos sinceros. - Eu sou sincera. - Mas queria mais amigos, amigas... - Não diga isso. Todo mundo te ama. - Não acredito. Hoje ninguém lembrou do meu aniversário. - Ah... então é isso? Você está chateada porque se sente abandonada, sei. - Não é isso... - Vem cá! Anely puxa a amiga pelo braço, a pantufa fica presa ao tapete e lá se vão as duas para o chão novamente. Mesmo assim, com muita pressa, Solange é puxada pelos cotovelos até a porta. - Espera! Vou tropeçar de novo! Meu celular está tocando! - Deixa isso pra lá e vem aqui. Cuidado com os degraus. A casa estava silenciosa. Tudo arrumadinho na sala e na varanda. Solange fica sem entender bolhufas. - Siga-me – Anely fala com um ar muito sério, jamais visto por Solange. - Estou assustada com seu jeito. - Shhhhhh! Silêncio nesta hora – sussurra reclamando. As duas caminhavam em direção à cozinha andando com a ponta dos pés. - Acho que você enlouqueceu aos 19 anos, Anely... não estou entendendo nada! Raios! - Gire esta maçaneta e abre a porta devagarinho, vai! Anda! Solange fica ressabiada. Mas resolve abrir a porta da cozinha conforme Anely dissera. - Surpresa!!!!!!!! Amigos, muitos amigos. Mãe, pai, vizinhos fofoqueiros (não dava para perder a festa surpresa da Solange, né). Até cachorro e gato formavam um coro a cantar “Parabéns pra você” à moçoila do começo da história. Solange ria e chorava ao mesmo tempo, queria abraçar a todos. - Fizemos esta surpresa porque você é muito especial para nós, Sola. - Nunca soubemos expressar tantas alegrias que você nos deu, Solzinha. - Que Deus continue te fazendo esta pessoa tão gentil. - Ah... não sei dizer nada tão chique... vem cá e me dá um abraço, Solange! Foi ouvindo estas palavras que a aniversariante terminou o seu dia. Acabou adormecendo ao lado da amiga no sofá da sala. De pantufa, descabelada, sem escovar os dentes sujos de bolo de chocolate e brigadeiro. Estava feliz. Descobriu aos 18 anos que amigos são assim mesmo: muitas vezes não dão as caras, te deixam de lado, mas jamais te esquecem. Cortam os cabelos, põem Botox, ficam velhos e rechonchudos, mas jamais te esquecem. E mais: são essenciais para a vida de qualquer um, nem que o primeiro seja um patinho amarelo de borracha. Nota do Editor: Michelle Rachel é jornalista e professora de Inglês na Faculdade de Campo Limpo Paulista desde 2003.
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