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Contos
30/01/2008 - 09h18
Dona “Sá Luiza”, quem não a conheceu?
Maria Mazzarello Cimini Martins Faria
 

Recordar dessa alma nobre me faz muito bem. Num ápice meu olhar perpassa por sua casinha. É como buscar a luz naquele lugar simples e acolhedor. Era ela, dona “Sá Luiza” como eu a chamava quando criança, uma senhora negra, alta e idosa que gostava de cheirar rapé e tomar uns golezinhos da boa aguardente inhapinhense.

Quem de nós não traz no arquivo da memória uma pessoa adornada de virtudes como foi Sá Luiza? Foi ela filósofa, poetisa, historiadora e política. De cada candidato tinha algo para engrandecer-lhe. Ficava sempre a observar e a indecisão lhe levava às urnas, mas quando lá chegava tranqüilizava-se; votava em todos para não aborrecer nenhum. Sua filosofia de vida é copiada por poucos e admirada por muitos; viver para servir com inteira abnegação e desprendimento é um valor incomensurável que poucos de nós conseguimos chegar a esse patamar de evolução. Neste mundo onde ainda predomina o mal, é fácil perceber nesses espíritos missionários, que a simplicidade da alma acompanha a nobreza do coração.

Todas as pessoas que iam à casa de Sá Luiza ficavam encantadas com o dom de oratória da velha negra, velha não, sábia. Contar os anos era uma coisa que fazia questão de não fazer. O tempo pra ela foi exatamente convencional e quando lhe perguntavam a idade, dizia com ares sério que era mais ou menos cento e cinqüenta anos. Pra mim era bem mais por que ela vivia com tanta veracidade cada caso contado que chegava a se transportar e transportar o ouvinte para a época citada.

Enquanto ia remexendo as brasas no fogão para colocar a caneca esmaltada, cheia de “café japonês” para ser esquentado, ia tecendo os casos mais absortos da história de Inhapim. Nos casos ela satirizava, mudava o tom da voz, gesticulava, e sua pequena cozinha em instantes se transformava em um imenso teatro. E agora? O “café japonês” já está quente, tomá-lo que era difícil. A dita bebida havia sido passada no coador com o mesmo pó de café de ontem e talvez de anteontem. A originalidade de Sá Luiza era tamanha que até hoje não descobri ninguém mais que faz esta receita.

Em um dos “causos” que ela contou-me, este foi absurdo, porque a mestra em oratória conseguiu fazer-me acreditar nela. O fato simplesmente distorceu-se por uma troca de palavras. O personagem principal da história era meu primo Luiz, filho do tio Filhote e seu afilhado. Aliás, todos os filhos do tio Filhote eram afilhados dela, era comadre ao quadrado, ao cubo ou algo assim. Sempre Sá Luiza queixava-se da saudade de seu afilhado Luizinho. Este, que já era homem feito, depois que partiu para o “pogresso”, (Belo Horizonte), para “cavar a sorte”, estava se esquecendo dela. Mas todas as vezes que vinha a Inhapim, passava a maior parte do tempo em sua casa, comendo seus quitutes e o prato da casa; a broa de fubá assada na caçarola de ferro com brasas por cima, e contando boas vantagens. Disse-me Sá Luiza que levou um susto quando um homem foi entrando pela casa adentro, lhe chamando de madrinha e abraçando-a. Ela disse-lhe: “- Foge de mim, você está de maiô!” Eu lhe perguntei com muita insistência: “- A senhora tem mesmo certeza que era maiô?” Ela respondeu: “- Sim, era maiô.” O mais interessante é que contei o ocorrido pra minha mãe, convicta que Sá Luiza estava esclerosada, mas minha mãe acreditou nela dizendo que seu sobrinho Luiz seria capaz dessas coisas pelas travessuras que havia feito quando criança. Só depois de muito pesquisarmos que fomos descobrir; logicamente ele não estava de maiô e sim de bermuda.

Ao transcender-me no tempo sinto o cheiro impregnante das pelotas de sabão preto que Sá Luiza colocava no chão. Cada uma era enrolada num pedaço de jornal e todas testadas pela qualidade total da sabedoria. Sempre dava certo. A fornalha de sabão nunca apagava e da mesma forma Sá Luiza mantinha sempre acesa a chama da amizade por todas as pessoas que por lá circulavam.

Certa vez a sábia negra resolveu aprender a ler, nem sei porquê! Só sei que no afã de desvendar o segredo das letras, todos que a visitavam tinham que ler um pouquinho com ela. O cenário da escola se resumia em uma pequena sala com um banco, uma mesinha com forro branco, a cartilha do MOBRAL e alguns galhinhos secos de assa-peixe. Sá Luiza ia dançando com os galhinhos em cima das letras, balbuciando as palavras e formando as frases: “- Viva a Vivi. Vivi viu a ave. A ave voa.” E o galhinho seco de assa-peixe continuava a dançar; lento... lento, mas seguro. Este foi seu único sonho, a ave queria voar e alçou um vôo tão grande, mas tão grande que chegou ao firmamento!


Nota do Editor: Maria Mazzarello Cimini Martins Faria, professora de Sociologia e Antropologia da UNEC – Centro Universitário de Caratinga e professora de História da FAESI – Faculdade de Educação e Estudos Sociais de Inhapim, uma extensão da UNIPAC – Universidade Presidente Antônio Carlos. Minas Gerais.

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