O pobre beija-flor voou por todo o jardim, em direção à parede cor-de-rosa, parou para sugar uma flor ou outra e, sem perceber, atravessou a janela semi-aberta, cruzou veloz o quarto ainda em penumbra e foi espatifar-se contra a vidraça do lado leste. Não viu o vidro, o coitado. A pancada atordoou-o por alguns segundos. Caiu, recompôs-se e voltou a voar em círculos, tentando encontrar a saída. A única que viu foi a claridade translúcida da vidraça. Voltou a bater nela, e de novo, e de novo, e de novo, sem conseguir entender o que estava acontecendo. Nascimento acordou, sobressaltado, com o barulho do bicho tentando, inutilmente, atravessar o vidro. Levantou-se num pulo e, antes que percebesse, estava na janela. Só então compreendeu o acontecido. Com calma, para evitar estressar ainda mais o animal, Nascimento abriu, vagarosamente, a vidraça e deixou que o beija-flor recuperasse a liberdade. O animalzinho bem que tentou, mas ao abrir a janela, suas asas se paralisaram e ele despencou para a morte, 25 metros abaixo. Já que estava de pé, Norberto resolveu que era hora de se levantar definitivamente. A noite anterior havia sido... Havia sido... Não se lembrava da noite anterior. Mas tinha certeza de que havia acontecido algo na noite anterior, algo grandioso. É isso, a noite anterior havia sido grandiosa! Olhou de soslaio o mundo lá fora. Era um dia de sol primaveril. Bom dia para estrear uma das novas Ferraris que mandara a fábrica entregar. Olhou o céu, azul como o mar batendo nas rochas a 30 metros da casa e tentou imaginar se mandaria aprontar uma vermelha ou uma amarela. Talvez nenhuma das duas cores. Afinal, o dia parecia pedir uma volta de helicóptero pela praia. - É isso! - gritou de si para si, fazendo o som reverberar nas paredes do enorme quarto. Estava decidido: sairia de helicóptero. Mas... O Falcon? Ou o Executivo? Ou ainda o Esquilo? Parecia mais ser o caso do Esquilo. Pequeno, quase todo transparente, permitiria mais vôos rasantes e daria para curtir melhor a beleza da região. - É isso! - ouviu sua voz soar novamente. Estava decidido: seria o Esquilo. Numa manhã de Sol, uma volta de Esquilo pela praia seria realmente reconfortante. Acabaria com o estresse. Caminhou pelo quarto em direção ao vestíbulo, escolheu seu melhor terno, experimentou-o, mas não gostou. Estava de folga. Ou de férias? E deveria vestir-se adequadamente. Experimentou uma roupa mais esportiva, depois um training, e shorts, e camisas pólo, e de novo o training. Finalmente decidiu-se: usaria tênis e um moleton amarelo. Não! Amarelo não! Amarelo seria muito chamativo. Preto! É, preto seria melhor. Ou ... branco! Por que não? Sim! Branco! Estava decidido. Com tênis combinando. Não, preto! Ou seria melhor o azul? Ou ... - Ah! Que importa, vai branco mesmo. - encerrou. Vestido num moleton branco comprado na Inglaterra e calçando tênis americanos, Nascimento saiu do vestíbulo e voltou ao quarto. Sentia-se elegante. Abriu totalmente a janela oeste, que estava entreaberta pelo descuido de um dos empregados, e que havia permitido ao beija-flor passar. Olhou lá em baixo, um dos jardineiros da casa, cuidando de suas tulipas. - Flores lindas - pensou. Sementes importadas da Grécia, premiadas na última estação. Tinham que ser tratadas com carinho e afeição e o homem, de meia idade lá embaixo, parecia estar acostumado a isso. Realmente estava fazendo um bom trabalho. Nascimento abriu totalmente a janela, deixando que o homem o visse, e acenou, cumprimentando-o pelo trabalho. Tão logo o viu, o homem deu um salto para trás, quase pisando sobre as maravilhosas tulipas que cultivava com tanto zelo. Seu chapéu caiu para o lado e, apesar de gostar muito da proteção, não teve coragem de voltar para pegá-lo. Sempre olhando para Nascimento acenando na janela o jardineiro continuou a correr de costas, correr, correr, correr, até tropeçar numa pedra e, ainda de costas, despencar no abismo em direção mar. Nascimento sorriu, enquanto o homem com cara de apavorado caia, e voltou-se para o quarto. Foi até a janela leste, de onde dava para ver a garagem. Dois outros homens, seus empregados, por certo, lavavam alguns dos carros. Da distância, não dava para ver exatamente quais eram, apenas as cores: um preto, um outro azul escuro, que parecia ser um Lincoln Continental e havia ainda um outro esporte branco. - A Lambo! - concluiu. Adorava sua Lamborghini branca. Havia, é claro, as demais, mas a branca... A branca era uma Superleggera do Murcielago, uma edição especial, denominada SuperVeloce e fora um presente de Stephan Winklemann, o presidente da marca, numa das muitas vezes em que viera para o churrasco do fim de semana. Os homens, lavando os carros lá adiante, estavam distantes, não viram que Nascimento já estava de pé. Apenas uma menina, de uns 8 anos, com cabelos louros, encaracolados, olhou para a janela, no momento em que Nascimento se virava. Foi o bastante. Disparou a correr na direção contrária à casa, cruzou toda a propriedade, atravessou as grades do portão, sem que os guardas tivessem tempo de detê-la, disparou pela rua afora, sem olhar para trás e só parou no cruzamento que levava à rodovia, quase mil metros depois, quando um caminhão, sem conseguir desviar, passou por sobre o frágil corpo da garotinha, deixando para trás uma massa irreconhecível. Nascimento nada viu. Agora, ele penteava os cabelos. Imaginava se já estava pronto. Deveria chamar uma das empregadas agora, ou não. Talvez não. Talvez, devesse tomar algumas decisões antes. E se ligasse para a holding, para saber como iam as empresas? Não, melhor não. Estava de férias. Pensou que talvez devesse tomar um banho e escovar os dentes. Talvez, mas não seria algo previsível? Detestava o previsível. Já ia apertando o botão do interfone para chamar os serviçais, quando mais uma dúvida o assolou: que horas seriam? Talvez fosse hora do almoço. E Nascimento, hoje, estava com vontade de ir almoçar em Paris. Teria, então, que cancelar o passeio pela praia e pedir, já, que preparassem um dos jatos. E se já fosse tarde?! Ó, deus, e se já fosse tarde?! A viagem a Paris levaria pelo menos 4 horas de vôo. Se fosse tarde... Ficaria sem almoço, mas não abriria mão de fazer suas refeições em Paris naquele dia. Ele desejava muito ir a Paris. Talvez devesse, então, pedir um lanche completo, comê-lo no quarto mesmo enquanto preparava tudo para a viagem. Mas não sentia fome. - Coma pela fome que vem - repetiu mecanicamente Nascimento, lembrando-se de seu pai - É, é melhor prevenir. - Preveniu-se. Ligou o interfone e deu as ordens necessárias para quem atendeu do outro lado. Não importava quem fosse. Do outro lado da linha, Cida atendeu a ligação. Quando ouviu a voz do outro lado, arregalou os olhos numa faísca e caiu para trás, dura, antes que suas colegas pudessem fazer qualquer coisa. Nascimento ficou esperando pelo café, reforçado, que tomaria, enquanto lhe preparavam o helicóptero para ir ao aeroporto e ao Global Express, que já deveria estar abastecido e com os motores ligados, pronto para ir a Paris. - Ah Paris, Paris, como devia estar bela nesta época do ano, fosse qual fosse a época. Esperou, esperou, esperou. Ninguém apareceu. O Sol pôs-se a pino, esquentou o quarto, obrigando-o a, novamente, fechar as janelas e ligar o ar-condicionado. Lá fora, no jardim, um outro homem assumiu o cultivo das tulipas, sem dar atenção ao mundo a seu redor. Os motoristas terminaram de lavar os carros, guardaram e sentaram-se à volta de uma mesa, forrada com feltro verde escuro, disputando uma partida de buraco. Os helicópteros e os jatos não foram incomodados durante todo aquele dia de primavera. Nascimento cansou-se da espera e do caminhar de um lado a outro do quarto. No início da noite, voltou para a cama e dormiu quase instantaneamente. Sentia-se cansado. Tivera um dia atribulado e cheio de decisões. Amanhã, certamente, seria um novo dia. Ou seria o mesmo?! Mais um beija-flor (ou o mesmo) atravessaria o quarto acordando-o e depois despencaria morto. Nascimento teria tantas decisões, tantos afazeres. E seria só mais um dia, na longa fila de dias que a eternidade lhe reservava. Nota do Editor: Edmundo Pacheco é escritor por devoção, 46 anos, poeta por impulso, jornalista por profissão há 28 anos. Pai da Édile e do Dilee, marido da Sueli, avô da Julia. Três ou quatro livros escritos, nenhum publicado (procura editora, séria, desesperadamente). Perfil? Bom, já foi bóia-fria, catador de batatas, lavador de banheiros, pasteleiro, feirante, churrasqueiro de restaurante beira de estrada, pacoteiro, vendedor de tecidos, derriçador de café, repórter de impresso, pauteiro de TV, assessor de imprensa, revisor, diagramador, editor de texto de TV, funcionário público estadual e municipal, dono de lanchonete, confeccionista, balconista, corretor de imóveis, editor-chefe de telejornal, entre outros... Atualmente vende sanduíche natural na praia de Inajá, onde mora.
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