Uma pilha de livros, todos atirados, saindo do saco sujo de sangue, no piso da padaria, atrás daquele troço que mostra os doces e salgados... como é mesmo o nome? Não é balcão, é uma cristaleira enferrujada. O inspetor Murrinha não dominava as palavras, desconhecia seus significados, por isso vivia rodeado de objetos sem nome, que precisavam ser descritos para se fazer entender. - Ok, Murrinha, entendemos, os livros estão num canto, escondidos e só tu viu. Agora continua o relato. Não fosse gago, Murrinha passava uma lição de moral no Gordo, que sempre arrumava um jeito de acabar o seu prestígio. Não fosse gago e coxo, talvez pudesse comer a mulher do Gordo. Seria sua vingança. - É imppppportante saber de onde eles caíram. Eles caíram de cima dessa cccccccristaleira enferrujada, compreendeu? E ficaram no canto, onde ninguém viu, só eu. O Gordo olhou para o lado, onde estavam dois policiais, que participavam da investigação. Usava um palito pendurado na boca. Abriu as mãos em forma de leque, dizendo bem casual: - Entendemos... Murrinha sabia: seu argumento não pesava, sua descoberta agora era propriedade do Gordo, e praticamente estava fora do trabalho. Dera duro, tinha vindo na primeira hora, estava a postos quando notou algo estranho, o brilho néon de um papel de metal. Só então viu que era a capa envernizada de um livro. E mais outro. Havia um tesouro exposto com suas luzinhas naquele cantinho. Eram livros de negócios, auto-ajuda, como é mesmo nome? Livros que te conduzem para a inteligência visceral, emocional, ou sei lá o quê. O que fazia aquela pilha de livros esquecidos no lugar onde houvera um assassinato? - Suicídio, corrigiu o Gordo. A balconista se matou. - Com dddddois golpes na cabeça? Vvvvvai ver o primeiro não pegou direito aí ela mmmmandou ver de novo. Tttttodo mundo tem direito a uma ssssegunda chance, não é Gggggordo? O rotundo inspetor-chefe olha para o nada com seus olhos de sampacu. O gago Murrinha não era o problema. O problema era a imprensa. Já estava de sobreaviso. Dali a pouco chegariam as barbies segurando microfones, loucas para dizer afinal, afinal, afinal. - Afinal, foi morte natural, disse o Gordo no fim da entrevista. Houve uma gritaria geral: - Como morte natural? - Quero dizer, é natural que tenha morrido, depois de perpetrar suicídio. E chega por hoje. Vão ver se caiu algum barraco na zona leste. Psssst. Murrinha era péssimo com as mulheres, não acertava uma. Queria chamar a atenção da repórter, mas só sabia dizer psssst. - O senhor está me chamando, quer falar comigo, tem a ver com o caso? - Vvvvvamos tomar um café. Vem aqui. Mas sem o câmara, o motorista, o segurança e o microfone. Só tu, só tu. A mulher ficou desconfiada. Assim mesmo obedeceu. Foi para o canto da padaria, atrás dos gestos de "vem por aqui" do estranho policial, que usava chapéu de feltro e capote até os pés. - Oooooolha ali. - Não estou vendo nada. - Cccccomo não? Não vê o saco cheio de livros? - Ah, é verdade, o que tem? - Nnnnão acha estranho uma pilha de livros numa padaria onde houve um cccccrime? - Não. Por quê? - Tu é mesmo repórter policial? - Não, eu cubro shopping. Mas me disseram para vir aqui. - Como assim, ccccobre shopping? - Sabe Dia das Mães, da Criança, Natal, Ano Novo? Eu faço o link do shopping. Pergunto se vale a pena e eles respondem: vale a pena. Também cubro clima. Pergunto se está frio e eles respondem: está frio. Nada a ver com isso aqui. E fez uma cara de nojo. - Mas os livros devem significar aaaaalguma coisa, tu não acha? - Ah, isso deve, mas não é minha área. E se retirou. Murrinha ainda ficou olhando para ela, depois para o saco sujo de sangue. Tocou com o pé uma capa branca, brilhante, que tinha no título a palavra "Você" bem destacada. "Mas tu é burro, hem Murrinha. Em vez de investigar, quer colocar a imprensa nesse caso". Falava consigo mesmo, não atinava o que iria fazer dali em diante. - Murrinha, quer carona? Vambora para a delegacia. Os protocolos te esperam. Quero um relatório disso aqui, rápido. - Vvvvvai tomar no cu, Gordo. - Como é? - É o que eu fffffalei. Vai tomar no teu cu, Gordo. Os dois comparsas do inspetor chefe fizeram gestos de que iriam cair em cima do abusado, mas o Gordo pediu calma. Olhou o desafeto de alto a baixo e lascou: - Vê se some da vida policial, Murrinha. De hoje em diante você está por sua conta. Nem me aparece lá. Vais receber tudo pelo correio. Fica em casa vendo Sessão da Tarde. E ó, leva a pilha de livros. Quem sabe você acha uma pista. - Vvvvvou levar mesmo. Aqui está a cccchave do mistério. Todos riram. Sabiam que Murrinha lia romances policiais antigos e vivia enchendo o saco com aquela arenga. - Vai cagar pedra, Murrrinha, gago, manco, imbecil. Vai procurar tua turma. Murrinha ficou só na padaria, junto ao saco de livros. Com fúria, jogou toda a pilha no chão ainda ensangüentado. Do fundo do saco, agarrado a um manual de neurolinguística, lá estava ela, a arma do crime: uma faca bem pontuda e afiada, dessas de cortar queijo. Murrinha pegou um lenço, se abaixou e apanhou o material. A faca estava com riscos de sangue, pois tinha sido raspada na capa do livro de neurolinguística. O assassino confiava na polícia: bastava colocar a arma do crime num saco que ninguém iria desconfiar de nada. - O fiadaputa deu duas cutiladas na cabeça da vítima, disse que a coitada se suicidou e todos acreditaram! Foi quando Murrinha se virou e teve tempo de ver ainda a cara do dono da padaria, com um rictus no canto da boca, apontando uma arma para ele: - O Gordo fez uma encomenda. Mandou te matar, te colocar no saco junto com os livros, te atirar no rio, que ele livra a minha barra. Murrinha não podia escapar, era manco. Não tinha condições de gritar, era gago. E se revidasse e se desse bem, iriam acusá-lo dos dois crimes, o da balconista e o do patrão dela. Por isso suspirou e levou um tiro enquanto folheava um livro que encontrou no meio da pilha. Era uma brochura toda carcomida. Uma velha revista de casos policiais. Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); de um romance: "Universo Baldio" (2004); e de um livro de conto e crônicas: "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (2006). Jornalista desde 1970 e formado em História.
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