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Contos
30/12/2007 - 11h13
Uma noite na Bahiana
Urariano Mota
 

Era de noite, em 31 de dezembro de 1967.

De manhã o sol bufara, o vento soprara, a tarde se fez clara. Papeizinhos coloridos cobriam a cidade, árvores enormes de papelão estendiam os braços sobre o trânsito, papais-noéis gordos pedalavam do alto das lojas, lacerdinhas choviam nos olhos dos incautos. Na ponte que passa sobre o rio, o prefeito da cidade, baixinho, demagogo, o burgomestre, desejara em letras luminosas um Feliz Natal e Próspero Ano-Novo. Nas vitrines, bolos, doces, em profusão. De tantos doces moscas fartas adejavam tontas esbarrando-se, formando nuvens sob o azul da Veneza Americana, unindo-se às abelhas que iam parar na cabeça de Joaquim Nabuco, na praça do mesmo nome, circundando a cabeleira em grossas ondulações de um estadista no império.

Éramos três: eu, meu amigo geômetra, e um guia, amigo também. Chamar-nos-emos, eu, Peito de Nuvem, Diáfano Como a Brisa, meu amigo geômetra, Bondoso Como um Arcanjo, o nosso guia.

Íamos à Bahiana.

Naquela época, só o Todo Bondade não era adolescente. Nós outros dois, por volta dos dezesseis anos. Bondade, não, já passara dos vinte.

Vivia de expedientes. Um trambique aqui, uma chorada ali, uma vigarice mais adiante. Andava de camisa Volta ao Mundo, dupla face, cor marrom na frente, cor de creme atrás, óculos escuros, chapa frouxa encardida nos dentes precocemente cariados. Vinha da zona da mata, pois o pai abrira falência, um senso de sobrevivência rápido, prático, já urbanizado, fã de Gary Lewis e seus Playboys. Com os discos desse conjunto, dois ou três compactos, parece, um LP emprestado dos Beatles, circulava nas festinhas de fim de semana. Alimentava-se, como dizia, por verdade e cálculo para nos comover, de caldo-de-cana avec pão-doce. Éramos quase puros. O nosso amigo, escolado. Contava-nos anedotas picantes, que enrubesciam o meu amigo geômetra, e a mim perturbavam, para nos arrancar em troca uns dinheiros emprestados, que nunca nos pagava. Judas traiu Cristo por trinta dinheiros, nós, que não fundamos nenhuma religião, fomos sempre traídos pelo Arcanjo, do qual éramos discípulos.

Íamos à Bahiana.

Eu, Peito de Nuvem, intentava descobrir uma Regra de Ouro, uma Verdade Sublime de tamanha transcendência que engolfasse o subúrbio, e me alçasse ao reino dos céus. À direita de Deus eu andava, os pêlos ásperos no peito, carrancudo, aquela fase profunda que se quer misteriosa da adolescência. Estofado. Cheio dos Pensamentos de Pascal em mim. Grave.

Meu amigo geômetra era franzino, raquítico, míope. Branco de não se expor ao sol. Meticuloso, organizado, sábio. Passava horas a fio no estudo da geometria, embrenhando-se em intricados teoremas, lançando novas proposições, passeando desenvolto nas teorias de Gaspard Monge. De costas para o quadro, como se fosse girar e dançar um tango, desenhava firme com um só volteio uma circunferência, projetava rombóides, articulava elipsóides. Em suas mãos os diedros giravam, submetiam-se, rebatiam-se, reduziam-se à miséria de uma épura. Subvertia curvas, achatava-as contra uma reta imaginária, tornava-as ovais. Perseguidor da originalidade, pálido, subia ao vértice de um triângulo não- euclidiano, e balançava-se, suspenso na geodésica. Conversando conosco, gostava de nos pregar surpresas. Estava quieto, por exemplo, num canto calmo, mastigando sem pressa, e de repente dava um salto, insuspeito, imprevisível, para o murinho do chalé, escanchando-se ágil, como se, vaqueiro, pegasse um cavalo em movimento. Punha-se a olhar-nos muito sério: esperava a nossa aprovação, ou a nossa chocada repreensão. Um acrobata. Mas eis que ele pula de novo, dessa vez para trás, ameaçando um salto mortal. Sim, senhor, íamos todos à Bahiana.

Chegamos lá às oito. Melhor dizendo, eu e meu amigo geômetra. Já na Avenida Rio Branco nos separamos, com medo talvez de afundarmos todos num mesmo pântano, Bondoso seguindo prum lado e nós pro outro. Marcamos ponto de retorno ali mesmo, em frente ao Moulin Rouge, às onze e trinta, margem de tempo suficiente para a nossa aventura (uma empresa que ia dar o que falar, atinávamos, sem prever por quê), e a volta ao lar, de táxi, às doze em ponto. Estávamos bem-vestidos. Quase que trajados para uma noite de gala. Eu, de calça nova, escura, comprada num alfaiate que vendia no térreo de um edifício na Siqueira Campos, camisa vermelha. Rubro-negro de relógio no pulso, um relógio grande, bolachão, que só vivia parando, que de vez em quando me fazia dar um sacolejo no braço pro ponteiro trabalhar, disfarçando num cacoete. Relógio bonito no escuro, com luzinhas verdes iluminando o pulso, arranjado no contrabando da beira do cais. Sapato do ano passado, mas bem cuidado, pois que pisava cauteloso, evitando poças, dias de chuva, de muito sol, barro ou asfalto muito áspero. Sapatos bem engraxados.

O geômetra combinava uma calça roxa com uma camisa muito branca, limpa, bem engomada, de botões graúdos fechando-lhe o pomo-de-adão, mandada fazer há uns três meses e ainda não usada numa costureira conhecida. A camisa mais se assemelhava a uma nobre bata, de mangas pelo cotovelo, passando-lhe na cintura, de linho grosso, empertigada, com a dignidade de um uniforme de soldados reais em parada militar. De vida própria, autônoma, dançava no magro corpo do matemático.

Tinha os óculos brilhando na noite do dia trinta e um, com infinitas camadas, apequenando-lhe os olhos constantemente piscando, fechando-se, abrindo-se, abeirando-se das coxas nuas das senhoritas, como se o mundo estivesse sendo descoberto naquela noite, querendo saltar das órbitas, fazendo um arco de cento e oitenta graus, revirando, pedindo clemência aos céus por rever a perdida serenidade. Quase diziam, Pai, se vires que nesse cálice eu vou com muita sede, afasta de mim essa prova, ao mesmo tempo que insinuavam, deixa-me embriagar com vontade, paizinho.

Temendo poeira, constantemente limpava as lentes com um lenço azul, enxugando os vidros de uma imperceptível umidade, soprando, arejando, pondo contra a luz o vídeo do radar que trazia para a tela uns lábios vermelhos, uns cabelos perfumados, hum ... seios em decote ao pé das escadas das pensões.

Subimos à Bahiana. Pela resolução nos passos, dávamos a impressão de velhos marinheiros, ou de que éramos esperados. Senhores dos nossos impulsos, marchando rítmicos, os punhos cerrados, íamos com a decisão de quem vai comprar uma briga. Sem comentários enquanto ascendíamos. Respirando fundo.

A primeira impressão que senti foi a de que ali não era o meu lugar. Se existe uma expressão que diga acanhamento, medo, pavor, defesa, paralisia, enrijecimento da locomoção, este foi o meu sentimento. Olhei para o meu amigo geômetra: ele se enroscava em seu nascimento. De repente, vimo-nos jogados no centro do salão, no centro de tudo aquilo que imaginávamos como vida farta, luxúria, soltar-se à larga, expansão num bacanal, enfiamento num carnaval sem medidas. Olhei de novo para o meu amigo. Altivo, parecia pedir-lhe explicações: ele estendeu o queixo para longe, cofiou uns buços de barbicha, pôs-se a abrir os braços, como se quisesse diminuir a sua densidade, sentir-se leve, fluido, etéreo. Senti que enquanto ele procurava mostrar-se elegante, bem posto em sua armadura, sob a luz negra da sala, estava na verdade quase a cair. Toquei-lhe o ombro, mas desfiz imediato o gesto, pois temi vê-lo sair flutuando, pairando sobre os objetos. Dirigiu-me um olhar significativo, que não entendi, mas mesmo assim me pus a balançar a cabeça, aprovando ou reprovando, como um inspetor que fiscaliza o quarteirão. Pensei em sair do lugar onde me plantei, mas meu sapato pareceu ter-se agarrado nalgum chiclete. A música estrondava. Uma rapaziada desabusada dançava colados nas meninas, rindo, fazendo voltas, tirando finos nos dois investigadores da moral e dos bons costumes. Cruzei os braços sobre o peito. Onde estaria o nosso guia a esta hora? Uma mulata gorda, notei, já tarde, sem tempo para reagir, começou a vir em minha direção. É agora! Um sistema de alarme começou a soar, campainhas de metal danaram-se a retinir, discos começaram a chocar-se, uma música longínqua de esferas siderais, um cordão sem fim de despertadores a trinar. Olhei para o meu relógio: estava no mesmo lugar. Cerrei mais ainda os braços. Era agora ou nunca. A mulata começou a se roçar, e eu, em desespero de causa, comecei a farejar o teto. A mulata me abraçou, sempre à vista de todos, e eu, perdido, olhei-a com a cara da mais deslavada indiferença: cara de rapaz experiente. Os braços fechados começaram a estalar minhas costelas. A moça sorriu:

- Vamos dar uma, meu filho?

- Não, por enquanto não – e muito solene acrescentei: - Estou sondando o ambiente.

Sentamo-nos a uma mesa. Pedimos cerveja e bebemos com sofreguidão. Fazíamos comentários sem nexo, sobre a decoração do ambiente, o revestimento de papel nas paredes, aquela cerveja estava fria, esta mais gelada, tem cigarros?, uma carteira, o som da radiola era potente, o chão era de madeira mesmo. A mulata bem junto a mim, com a coxa sobre a minha perna. Eu bebia. Meu amigo me confidenciou que estava de olho numa lourinha, a lourinha é boa, rapaz, sim, certamente. Romântico, num clichê das novelas de rádio colgate palmolive, aproximei-me do ouvido de minha moça, e lhe disse, aveludando a voz, que meu amigo estava enamorado da lourinha, se ela não tinha interesse de sentar em nossa mesa e acompanhá-lo, isto dito com um ar de quem ajuda um pobre infeliz. Claro! Num gesto sub-reptício, incrível, a lourinha já estava em nossa mesa, ao lado do geômetra. Dividimo-nos então. Levantei-me, peguei da mão da mulata, como um cavalheiro da nobreza, e trancamo-nos num quarto de tabique.

Ela me ajudou e foi gentil, ensinou-me onde exatamente ficava aquele lugar, que eu queria que ficasse imediatamente abaixo do umbigo. Está certo agora?, arrisquei; sim, é aí mesmo, gentilmente aquiesceu. Sorriu. Apagou a luz do quarto e nos perdemos em sombras.

Enquanto vestia a calça comprada no alfaiate, eu me perguntava o que estaria fazendo àquela altura o meu amigo. Ele não bebia, não fumava, enxergava mal e não tinha físico ou habilidade para se defender. Passando o cinto, que eu, não sei por quê, havia-o todo tirado, imaginava-o morto, estendido no salão, ou desmaiado, com a lourinha aflita tentando reanimá-lo, ou ele sendo jogado para fora pela janela do segundo andar do pardieiro. Ou mesmo verde, violáceo, desconsolado, olhando os navios parados na penumbra do cais.

Saio, e o espetáculo que vejo não me deixa crer: o meu amigo está bem assentado em sua mesa, vermelho como uma lagosta, dando cotoveladas num marujo grego, soltando risada, de verbo fácil, com a loura no colo, com um cigarro nos dedos, fazendo bico, dando baforadas. E se dirige a mim aos berros:

- Cadê você, rapaz?, e apertando-se na lourinha, aponta-me: - Olha o homem!

Só consigo dizer-lhe, olhe a hora, rapaz, não vá se entusiasmar muito. Levanta-se, dirige-me ordens, que eu fique ali guardando a mesa, que agora é a sua vez, que a lourinha tá no papo. Encaminha-se ao quarto, ouço ou imagino em angústia a volta da chave na porta.

Enfim a sós, põe-se sério. Apenas resfolega pelas narinas o fogo do álcool. Arqueja. Aos poucos vem ganhando controle. No seu habitual, vai, metodicamente, depois de estar nu, retirando o par de meias, uma por uma, lento, todo concentrado em seu ritual.

Pelo corredor ouvem-se pisadas fortes chocando-se contra o piso. Molas velhas das camas rangem nos cubículos vizinhos. Cheiro de urina recende forte misturado a fermento de cerveja e rum. A radiola segue no hit-parade. Bater de copos, um apito no cais. No quarto, uma mesinha coberta de plástico com desenhos de dálias e rosas. Um jarro d’água, uma bacia, rolo de papel higiênico. Uma lâmpada fraca, de quarenta velas, dependurada na porta. Meu amigo geômetra não se perturba. Pálido, vai paciente deslizando a meia sobre o pé, concentrado no strip-tease do seu pé. A prostituta se impacienta:

- Não é preciso tirar a meia, não.

E ele, acordando com um salto, que já o põe sobre a cama, torna a vestir a meia rápido, como se pego em flagrante delito:

- Ah, sim, eu estava esquecido. Engraçado, eu já tão acostumado!

A moça sorri, e deitada sobre a colcha costurada de quadradinhos de panos diversos, deixa a pose de espera e põe-se a brincar com o geômetra, como se tivesse nas mãos um bibelô, um bonequinho de carne gracioso que faz piruetas. Diáfano, refeito, ele abre os braços, de joelhos sobre o colchão, e ameaça soltar um grito de tarzã na selva. A moça franze o semblante.

- Meu filho, por que você é tão magro?

E o geômetra, gutural, ligeiro, contente do próprio reflexo na resposta de espírito:

- É de meter!

Descemos acabrunhados para a rua. O efeito da cerveja passara. Apalpávamos os nossos bolsos, sentíamos o efeito da noite do dia trinta e um. Restavam-nos, se muito, juntando tudo, uns trinta e nove cruzeiros. Cabisbaixos, trocávamos resmungando as nossas impressões, a minha foi assim, já a minha fez isso. Normal? Normal. Onze e quinze. Estávamos na Avenida Marquês de Olinda, defronte ao Moulin Rouge. De longe, avistamos o nosso guia, vindo do lado do porto, balançando os braços, que ao ver as nossas caras, prorrompeu numa gargalhada sinistra.

Tudo bem? Rapaz, eu nunca, nunca... – e acenava o dedo sobre o nosso espanto: - Nunca, nunca em toda a minha vida eu tive uma relação como a que eu tive hoje. Vocês estão pensando que eu estou mentindo, é? A mulher não queria me deixar sair do quarto. Mulher carinhosa, rapaz, humana, não teve nenhum comércio no meio. – E depois de uma pausa tenebrosa: - Que foi que houve, não deu certo com vocês? Sinto, sinto muito, pois comigo foi diferente.

E repetia enfático: “Nunca, nunca, nunca...”, o nunca retinia em nosso ouvidos, fazia eco dentro da gente, deixava-nos sem vontade de articular qualquer mentira. Apenas balançávamos simultâneo os queixos, soltando aqui e ali uns gemidos. O nosso guia ria, e à medida do nosso desencanto, testemunhava-nos mais ainda o seu encanto.

Foi ouvindo “nunca” que às onze e trinta pegamos um táxi e voltamos para casa. Para um bar em Água Fria, melhor dizendo. Já no bar, às doze em ponto, com todo o mundo se abraçando, aos votos de feliz ano-novo, Bondade nos contou às gargalhadas a verdadeira história do seu paraíso. A primeira experiência era sempre assim, assegurava-nos, e mandava-nos repetir o nosso acontecido. Contávamos. Feliz, pagou-nos um champanhe barato, do qual reforçava as qualidades afetando a pronúncia do “georges aubert”, enquanto lá fora os sinos da matriz de santo antônio repicavam. Entusiasmados, arriscávamos uns assobios para as moças que tomavam o rumo do reveillon: parecia-nos que passavam todas de branco. No céu, mil novecentos e sessenta e oito abria-se em fogos de artifício.


Nota do Editor: Urariano Mota é escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

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