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Contos
18/10/2007 - 05h32
Por baixo de uma saia de prega
Benedito Ramos Amorim
 

O casamento de Maria Querência com Jesuíno Pereira tinha sido a maior festa que Bom Jesus dos Pecadores já tinha visto. Apesar de não ser um homem rico, o pai de Jesuíno trazia a sua fazenda por três gerações. O Coronel Nicácio Pereira era um homem considerado severo nas suas ações, e temido pelo seu gênio explosivo. Razão de sobra para ser tão respeitado, sobretudo pelos adversários políticos. Nunca quis ser prefeito da cidade, até porque não sabia ler e nem votava, mas tinha sempre um candidato que se elegia para garantir seus interesses. E aquela festa de casamento trazia um sentido especial para ele. Tinha se acabrunhado por dois anos quando sua filha Miquelina apareceu prenha de um empregado seu. Com medo da reação do pai, fugiu e se amoitou na casa da madrinha que morava em Mata Grande. A velha ainda foi procurar o compadre para ajeitar as coisas, mas a sua reação foi a pior possível.

- Comadre Lindalva se Senhora acoitou aquela quenga na sua casa, fique com ela.
- Mas compadre...
- É o que eu estou dizendo.
- Mas a comadre Da Luz está se acabando de saudade da filha.
- Deixe Da Luz chorar. Um dia ela pára e esquece. Aqui em casa eu não a quero mais. E passe muito bem comadre.

Por isso aquela festa era pra lavar a sua alma. Aparentemente tinha esquecido a filha que nunca mais apareceu na cidade. E só Da Luz que foi não foi aparecia chorando pelos cantos das paredes lembrando de Miquelina que agora já tinha lhe dado um neto, que nem conhecia ainda. Não tinha virado quenga, como garantira Nicácio, mas o safado do marido era um cachaceiro que não lhe dava sossego. Comadre Lindalva tinha arranjado uma sarna pra se coçar.

Com Jesuíno era diferente, estava se casando com uma moça trabalhadora, de muitas prendas embora pobre que nem Jó. Nasceu e se criou numa pequena propriedade atrás da serra de Água Branca, onde o clima era generoso com o que plantava e criava. Tinha perdido o pai muito cedo e viveu sempre em companhia da mãe que depois de velha havia cegado completamente. Conheceu Jesuíno na feira quando ele desceu do cavalo e ficou olhando pra ela sem dizer nada. Maria Querência sempre foi muito arisca pra banda de homem. E o olhar amarelo do rapaz a assustou tanto que deixou a banca em que vendia e saiu pela feira afora quase sem destino. Foi quando ele continuou a seguí-la. Não pode fazer nada a não ser parar esbaforida e tentar encontrar voz para encarar o moço. Mas o bicho foi bem mais rápido e só pediu desculpas por assustá-la. Ela respirou aliviada e pela primeira vez olhou para o jovem e lembrou que o viu tantas vezes desmontar quase a sua frente. Era bonito, naquele rosto cortado a facão, marcado por uma barba rala e uma cabeleira loura que se escondia embaixo de um chapéu suado e roto. Para Jesuíno, aquela moça nem trazia a faceirice de outras que se enxeriam pra ele. Mas era aquele seu jeito forte de cara amarrada, sem um sorriso à toa que o fascinava. Talvez aquele seu porte recatado, vestindo uma blusa de pano estampado com uma saia de prega, fora de moda, parecendo uma crente. Pronunciou seu nome pela primeira vez, logo que se apresentou. Olhou de perto aquela mulher esguia, de mãos pouco delicadas cujo rosto quase triste estava emoldurado por uma longa cabeleira negra atada à nuca por uma fita vermelha. Depois desse encontro os dois voltaram até a banca de Querência onde continuaram a conversar. Era a primeira vez que dava prosa a um homem dali.

Isto havia ocorrido logo depois que sua irmã fugira de casa. Por isso nem contou a ninguém que conhecera a moça, nem que tinha se encontrado com ela algumas vezes. O clima de sua casa estava tão crespo que nenhuma de suas irmãs ousava a tocar no nome de Lindalva. O pai mesmo se fazendo de forte vivia bisonho. E quando sentava na varanda olhava horas a fio pro céu como se procurasse alguma coisa naquele verão escaldante onde quase nenhuma nuvem aparecia. Ficava tapeando dizendo que estava com medo do açude secar, mas no fundo não era o céu nem o sol que o entristeciam era saudade da sua filha mais velha, que beijava o seu cangote quando estava ali mesmo naquela cadeira de balanço. Vez por outra uma lágrima escorria furtiva que ele acudia rapidamente sem deixar vestígio. Quando a voz embargava e ele tossia, tossia e depois pedia um copo d’água. Era a poeira.

Quase seis meses haviam se passado quando Jesuíno levou a namorada na casa do pai. Primeiro, o velho ficou parado, olhando aquela moça, admirado com o pouco gosto do filho. Maria Querência não era grande coisa, havia moças mais bonitas, mas delicadas e de menor compleição muscular que ela. Era o trabalho árduo na enxada. O sol. Sempre o bendito sol queimando a pele e secando a terra. Mas devia ser uma moça trabalhadora, pois tocava a fazendinha do pai quase sozinha. Tinha uma mãe cega e mais dois irmãos que ela havia ajudado a criar. Não se importava com a moça simples, nem com as suas mãos calejadas. Seu filho tinha gostado dela e isso era o bastante.

Era muito difícil de entender porque logo na primeira noite, depois do casamento, Jesuíno Pereira estava quase matando Maria Querência, sua mulher com quem havia casado fazia algumas horas. Agora estava sentado numa cadeira olhando para o chão pensando na vida. Não sabia o que fazer. Havia entrado tão feliz naquela casa que construiu junto à sua sogra, sentia que não podia separá-la da filha nem tirar a mulher de junto de suas terras. E aquela casinha miúda de biqueira pintadinha de verde era a coisa mais linda de sua vida. Não era uma construção vistosa, mas o suficiente para um casal morar confortavelmente. O pai tinha comprado toda a mobília e os eletrodomésticos necessários. E a própria Querência tinha completado o enxoval. Estava feliz demais para se ver em uma situação daquelas.

Querência restava-se deitada ainda no chão se refazendo do chute que havia levado. O rosto sangrava perto do nariz e ela respirava com dificuldade. Não ousava sequer dizer uma palavra. Durante muito tempo tentou conversar. Tentou dizer a ele o seu segredo, mas ele nunca a ouvia. Sua mãe a desencorajou muitas vezes de prosseguir com o casamento, mas a essa altura amava aquele homem como nunca havia amado ninguém em sua vida. Vivia aflita e tentou muitas vezes encontrar um meio de acabar o namoro e depois o noivado. Mas Jesuíno era um rapaz muito sério, doce, e não conseguia fazer nada errado que motivasse pelo menos uma briga. Foi um erro ter prosseguido com aquele compromisso. Sua mãe repetia assustada enquanto ela imaginava que o seu amor superaria qualquer coisa. Mas não tinha sido assim. Estava ali deitada no chão com todas as dores em meio a um silêncio ensurdecedor. Tinha certeza que àquela hora sua mãe estaria rezando por ela no meio daquele silêncio, ajoelhada pedindo perdão a Deus por tê-la ajudado enganar Jesuíno. Razão pela qual apanhou calada e sem alarde algum permaneceu ali deitada esperando talvez a própria morte, para evitar escândalo.

Tinha sido feliz durante todo aquele tempo em que conhecera Querência. Esquecera tudo por ela. Nunca mais havia ido pra nenhuma festa sozinho, nem dançado com nenhuma outra moça. Até nas gandaias não andava mais. Vivia para ela. Respeitava o seu jeito lerdo de aceitar o seu carinho, sem permitir que ele fosse mais ardente. Continha a sua excitação com um longo beijo cheio afeto, mas se limitava aos afagos demorados e nada mais. Era isso que mais enfezava Jesuíno. Tinha sido enganado da pior maneira possível. E, de uma forma que não tinha coragem de voltar para a casa do pai e contar. Tinha vergonha de si mesmo e não ousaria aparecer mais nunca na cidade. Preferia morrer a ter que encarar as pessoas. Por isso só teve tempo de pegar um bisaco e colocar alguns pertences pessoais e ir embora naquela mesma noite sem ao menos olhar para trás.

Só depois disso foi que Sinhá Bilinha abriu a porta e foi até a casa da filha. Maria, como a tratava, estava ainda deitada no chão. A velha mesmo na sua cegueira parecia adivinhar o que havia ocorrido e abaixou-se tentando ajudá-la a levantar-se.

- Primeiro você precisa vestir-se e depois eu vou chamar seus irmãos para ajudá-la.
- Oh! A Senhora tinha razão...
- Eu sabia que isso não daria certo. Você devia ter acabado com esse casamento enquanto era tempo. Ainda hoje cedo eu lhe falei, antes de você ir pra a igreja. Lembra?
- Mas eu achava que ele iria me aceitar mãe. Ele gosta de mim.
- Não minha filha, ele gosta de Maria Querência, a moça recatada que ele conheceu e respeitou até o dia do casamento.

Sua mãe estava certa. Ele jamais a perdoaria. Talvez tudo aquilo tivesse acontecido do mesmo jeito se tivesse contado antes. O erro foi deixar a história seguir o seu curso sem pensar nas conseqüências. Mas havia pensado demais. Muitas vezes se deixou ceder às suas cariciais enquanto ele explorava o seu corpo. Jesuíno poderia ter ido mais além se o quisesse. Mas parecia respeitar a sua intimidade como uma coisa sagrada. Melhor seria que se tivesse entregado totalmente ao seu desejo. Ela ao contrário sempre devolveu o seu carinho com uma ternura inda maior que o deixava quase louco. Sabia o quanto a amava. Sabia que o seu desejo poderia sobrepujar todas as diferenças.

Mas isto não aconteceu. E durante aquela noite Sinhá Bilinha esteve ao lado da cama de sua filha, ajudando-a na sua dor. Seus irmãos ainda queriam tomar satisfação com seu marido, mas ela mesma os persuadiu a esquecer.

O dia já havia amanhecido quando ouviu o bater da porta. Sua mãe levantou de uma só vez e correu até a sala. Depois perguntou baixinho quem era. Foi quando ouviu novamente a voz de Jesuíno. Sinhá Inácia não abriu antes de ir até a cozinha e tomar uma peixeira. Foi quando abriu avisando ao genro que se ele se arvorasse a bater em Maria ela o mataria. Mas Jesuíno estava calmo, a raiva inicial havia passado e ele começava a cair em si e ver que não podia deixar as coisas daquela forma e apenas pediu para entrar. Sabia que aquela velha cega não poderia fazer nada contra ele. E só respeitou a sua dor.
- Eu não vou fazer nada Sinhá Bilinha eu quero apenas conversar com sua... filha.

Não tinha coragem de olhar na cara de Maria Querência porque a raiva vinha novamente com toda a explosão de fúria. Era preciso controlar-se. Por isso, falou dali mesmo da sala, sem olhar em direção ao quarto e o necessário para ir embora de uma vez. Precisava ter aquela conversa, por pior que fosse era melhor do que se a verdade corresse solta pela cidade e caísse nos ouvidos de seu pai. Era melhor que tudo fosse esclarecido de uma outra forma. Mesmo que a situação não mudasse muito em relação a sua vergonha seria mais digno contar o episódio de outro jeito. E assim não pensou sequer em tentar convencê-la, mas a obrigá-la a dizer que a havia deixado porque não era virgem. Ela não respondeu nada e ele deu meia volta para sair. Foi quando parou e tornou a repetir. - Outra história não pode sair daqui. Se eu souber de algum boato eu volto e mato todas as duas. Ainda teve voz para perguntar para onde ele ia. - Não interessa respondeu. Para bem longe de você.

Bateu a porta com uma força que parece ter estremecido toda a casa. Foi quando Maria Querência chorou pela primeira vez. Chorou por Jesuíno como nunca chorou por ninguém. E ficou ali soluçando bem alto a ponto dele chegar a ouvir e parar para escutar. Depois engoliu em seco e se foi de uma vez.. Não podia voltar. Nunca mais voltaria.

E Maria Querência teve que encarar sozinha toda aquela historia. Primeiro com os pais de Jesuíno. O velho Nicácio Pereira não a perdoou. No outro dia mandou buscar os móveis, a geladeira, fogão e tudo que havia dado para o casório. Maria mandou um recado dizendo que podia mandar desmanchar a casa se quisesse. Estava voltando a morar com a mãe de quem nunca devia ter se separado. Ali sim, era seu. Dizia isto, mas no fundo achava que o pai de Jesuíno tinha razão, sobretudo, porque era mais um filho que se metia na lapa do mundo.

Não teve mais notícia de Jesuíno. Tinha saudade e chegava a chorar muitas vezes até tomar uma outra decisão louca que sua mãe novamente tentou dissuadi-la. - Eu vou ter um filho de Jesuíno. - Disse a mãe já decidida. - Você sabe que não pode ter um filho. - Posso sim. - Respondeu e acrescentou. - Eu vou tirar essa vergonha que ele disse ter passado comigo. Um dia quando ele cansar ele vai voltar, mãe. Jesuíno nunca vai me esquecer. E no mesmo dia providenciou uma pequena barriga postiça e começou a ir a feira assim. A cidade inteira percebeu e começou a comentar que a mulher de Jesuíno Pereira tinha ficado prenha. Como de costume, dava pouca conversa e só ouvia aqui e acolá os mexericos a respeito de sua separação. Uma semana depois sua sogra encostava-se em sua banca e tentava falar com ela. Maria não se fez de rogada, atendeu Dona Da Luz com sua discreta simpatia. - Nem se preocupe Dona Da Luz eu estou bem. Fique tranqüila. - A mulher ainda ficou olhando para ela e em seu rosto ela sentia uma grande ternura a ponto de encorajá-la a perguntar: - A Senhora teve alguma notícia de Jesuíno? - Não minha filha - respondeu com a mesma tristeza. - Infelizmente não.

Quase nove meses haviam se passado, nesse período Maria Querência viaja duas vezes até Caruaru. Fica na casa de uma tia e através da prima começa a procurar uma criança recém-nascida para criar. Tinha que ser sua, mesmo que precisasse pagar aquele segredo. A prima morria de pena porque sabia que ela não podia ter filho e não queria que o marido soubesse. Era o que havia lhe contado. Ele não precisava saber da verdade.

Duas semanas depois estava voltando com a criança e o bucho vazio. Sua mãe mais uma vez compartilhava das loucuras de Maria. Só que dessa vez a coisa era muito mais séria. Até porque a família de Jesuíno havia se chegado, principalmente Dona da Luz que estava radiante com o neto. Era a cara de Jesuíno! Isso ninguém podia negar. Menino novo é tudo parecido, dizia isso assim meio sem jeito. Mas as cunhadas, principalmente, asseveram ainda mais aquela semelhança.

A presença daquela criança deu sossego aos boatos e Maria voltou a ir a feira menos enfezada. Mas não mudou o seu comportamento quieto e arredio. Limitava-se a vender seus produtos e montar no burro de volta pra casa. Foi como levou a vida por um bom tempo até receber a visita de Dona Da Luz. Jesuíno tinha mandado notícia. Estava em São Paulo. Estava muito bem! Mas, tinha se amigado com uma mulher de lá. A essa altura, passados mais de quatro anos, Querência não esperava mais que o marido voltasse para ela. Mas a notícia de seu novo casamento desmontou o seu rosto que empalideceu enquanto as lágrimas desceram sem controle. Não quis mais ouvir e entrou. D. Da Luz a acompanhou e pediu muitas desculpas. - Minha filha eu achava que devia lhe contar a verdade. De repente meu filho aparece aqui com essa mulher e você vai se chatear ainda mais. - Dizia a sogra tentando acalmá-la. Mas nada tinha mais importância. Tudo o que fizera foi em vão até mesmo o filho que consegui com tanto segredo não fora suficiente. Ele nunca mais voltaria para ela.

No dia em que Jesuíno voltou foi a maior alegria na casa de Coronel Nicácio. O velho não acreditava que fosse o filho que estava voltando trazendo dentro do carro sua irmã Miquelina e seu sobrinho. Tinha aproveitado o ensejo para fazer aquela aproximação. Achava que, principalmente, sua mãe precisava daquela alegria. E foi o que aconteceu. Dona Da Luz chorou quase meia hora abraçada aos dois filhos, enquanto o velho Nicácio temperava a goela enquanto limpava as lágrimas que desciam sem controle. O resto era sentar e saber a novidades. Tinha vindo sozinho. Sua mulher tinha uma loja e não podia ausentar-se naquele momento. É quando sua mãe o chama até a cozinha e conta sobre o filho de Maria Querência.
- Não pode ser minha mãe.
- É sim. E é seu filho. É um menino lindo e está com três anos agora. Adora andar a cavalo igual a você quando era pequeno. Tem as mesmas manias.
- Mãe pare com isso. Esse filho...

Mas não podia dizer nada e apenas engole em seco e vai para a rua ainda abraçado com a mãe. - Eu preciso ver uma coisa mãe... - E sai dali em direção à mesma fazendinha onde tantas vezes encontrou Maria Querência. E lá estava ela, como se o tempo não houvesse mudado. Viu de longe um menino correndo e imaginou ser aquela a criança que ela diz ser seu filho. Não acreditava que parava o carro diante dela sem voltar àquela mesma fúria daquela noite. Não queria lembrar mais nada. Estava bem. Estava feliz. E vinha apenas tirar aquela história a limpo. Para Maria aquele encontro era tudo o que havia esperado durante os últimos quatro anos. Por isso olhava para Jesuíno e via o quanto ele havia mudado. Estava mais branco, limpo, com outra aparência e ainda mais bonito.

- Como vai Querência?
- Vou bem e você?
- Eu estou bem. Cheguei a pouco tempo na casa de meu pai. Vim aqui para saber de uma história que me contaram.
- Sobre o menino.
- Sim.
- É aquele ali, se chama Jesuíno, igual a você.
- Mas ele não é meu filho, você sabe muito bem...
- Eu sei de tudo. Mas é seu filho. É sim. Eu o consegui com muita dificuldade, sacrifício e segredo, coloquei pano na barriga durante nove meses e fui parir longe daqui. E todo mundo me viu chegar no ônibus com o menino nos braços e bucho vazio. Eu fiz isso por você.
- Por que?
- Porque você não merecia ter sido enganado. E eu o enganei. Não queria que sentisse vergonha de mim. Queria que dissesse a todo mundo, sem medo, que eu fui sua mulher e pronto. Você me deixou porque eu não era mais moça. Do jeito que você determinou. O resto seria um segredo meu e seu.
- E de sua mãe...
- Ela morreu faz dois meses.

É quando o menino se aproxima e pergunta quem é o homem do carro. Querência fica calada enquanto olha para Jesuíno. Os dois sabem que aquele é o momento e nenhum outro, para negar ou aceitar aquela mentira. - Eu sou seu pai. - Diz isso e abraça o menino muito forte. Não podia entender como tinha conseguido amar daquela forma Maria Querência. E mesmo depois de tudo não conseguia odiá-la. A raiva havia sumido e sentia um carinho enorme pelo seu jeito bruto de viver. Saiu dali pensando em sua vida. Uma vida que havia construído durante os últimos quatro anos longe da autoridade do pai. Estava voltando outra pessoa. Mais livre e menos preso àquela terra e aquele mundo.

O carro afastou-se e ela também começou a pensar no que fizera de sua vida. Tinha perdido Jesuíno para sempre. Mas a verdade é que ele nunca seria completamente seu. Não da forma como ela queria. Não como ele a imaginou. Tinha enganado a um homem bom. E chegou a pensar que ele havia percebido a sua mentira. Acreditou nisso. Talvez ela mesma tivesse acreditado que era uma mulher. Mas nunca tinha sido. Era uma invenção sua e da velha Bilinha. Era o que queria ser desde pequeno e só a mãe percebeu e a ajudou mentir para todo mundo. No fundo tinha vontade de ter uma filha. O marido havia morrido muito cedo e a companhia de Querêncio era tudo o que lhe restava. Mas não podia criá-lo assim efeminado. Não em um mundo como aquele hostil e severo. E foi aquela sua vida afastada da cidade que contribuiu para isso. Ninguém conhecia seus filhos nem sua vida. Criou a menina Maria Querência e sua decisão foi tão firme quanto os gritos que dera no sacristão pelo seu bastistério que ele insistia ser de um menino. - Você está doido! Quer saber mais do que eu que sou mãe. Quer que eu a traga aqui para mostrar o rabo a você. - E o sacristão morto de vergonha, diante daquela cena acreditou mesmo que seu finado pai tenha se enganado quando escreveu aquelas anotações no livro da igreja. Foi assim que Querêncio se transformou em Maria Querência e conseguiu subir ao altar. O resto aquela sua vida bravia foi capaz de moldar uma mulher forte decidida, segura, sem a graça das outras moças, mas do jeito que Jesuíno a havia amado, sem se importar com seu pouco busto e com a falta de doçura de seu rosto. Amou uma mulher que idealizou para cuidar de sua casa e ter uma família. Talvez por isso não a tenha perdoado naquele primeiro momento. Agora que o tempo havia passado e sua visão do mundo era diferente a presença daquele filho postiço que ela tinha lhe arranjado não o afrontava. Era uma prova de que Maria Querência não merecia o seu ódio para sempre. Mesmo sem saber, havia casado com um homem e agora era tarde demais para se divorciar.


Nota do Editor: Benedito Ramos Amorim é Historiador, Crítico de Arte, acumulando os cargos de Coordenador da Ação Cultural e Superintendente Executivo da Associação Comercial de Maceió. Com livros publicados a partir de 1974 - Mona Lisa Um Auto-retrato de Leonardo da Vinci - pesquisa, em 1979 - Lamento Derradeiro - contos, 2003 - A Construção do Palácio do Comércio - Pesquisa Histórica/EDUFAL, Um Amor Além do Tempo - romance/HD LIVROS e 2006 - Doce de Mamão Macho/CATAVENTO. Articulista de diversos jornais como: Jornal de Alagoas a partir de 1976, O Jornal entre 2001 a 2005 tendo publicado em fascículo o livro: O Halo da Besta e atualmente no Jornal Gazeta de Alagoas. Prêmios: Moinho Nordeste - 1979 com o livro - Lamento Derradeiro e Graciliano Ramos - 2006 com o romance: Pensamentos Mágicos(inédito), ambos da Academia Alagoana de Letras. Palestras: Diversas palestras sobre História da Arte e Arte Contemporânea. Corpo docente do Curso Técnico de Guias Regionais do SENAC desde 1996. Cadeira nº 9 na Academia Alagoana de Letras.

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