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Entrevistas
08/10/2007 - 10h16
Doenças da exclusão
Fábio de Castro - Agência FAPESP
 

Cerca de 90% dos recursos para pesquisa e desenvolvimento no setor de fármacos são destinados para medicamentos contra doenças que atingem 10% da população mundial, como hipertensão e diabetes.

Enquanto isso, a dengue atinge cerca de 50 milhões de pessoas em mais de cem países. A malária, para a qual não há medicamentos, infecta mais de 300 milhões e mata 1 milhão de pessoas a cada ano. A tuberculose, para a qual não se lança um novo medicamento há 30 anos, ceifa 2 milhões de vidas por ano. Só no Brasil, 46 mil pessoas morrem anualmente no Brasil com doenças infecciosas.

Para o professor Carlos Morel, diretor do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Brasil, ao contrário da maioria dos países que sofrem com essas doenças, tem capacidade técnica para suprir a necessidade de gerar novos medicamentos de combate a elas.

Segundo ele, com vontade política, parcerias junto ao setor privado e uma política mais robusta de ciência e tecnologia - que favorecesse a inovação - o país poderia aproveitar uma oportunidade única de se tornar um produtor de medicamentos para essas doenças, melhorando sua infra-estrutura industrial e beneficiando a população com menos recursos.

Morel, que publicou na revista Nature, em setembro, um artigo sobre o assunto (para ler, clique aqui), concedeu à Agência FAPESP a seguinte entrevista:

Agência FAPESP - A falta de retorno financeiro é a principal causa para que não se desenvolvam fármacos voltados ao combate das chamadas doenças negligenciadas, típicas de países pobres?
Carlos Morel -
Essa é a principal dificuldade para a pesquisa. Mas a questão envolve diferentes tipos de problemas. Temos, por exemplo uma vacina contra a poliomielite que é quase gratuita. Mas há dificuldade para fazer com que ela chegue à população: é uma falha de saúde pública. Em outros casos, há uma falha de mercado: o medicamento existe, mas é muito caro, como os anti-retrovirais. Outras vezes, há uma falha da ciência, isto é, o medicamento não existe porque ninguém conseguiu desenvolver. É o caso da malária.

Agência FAPESP - Em que proporção essas doenças são negligenciadas?
Carlos Morel -
Para se ter uma idéia, cerca de 90% dos recursos são aplicados em doenças que atingem 10% da população mundial, como hipertensão e diabetes. São doenças que atingem quem pode pagar. A indústria investe praticamente todos os esforços nelas, porque o retorno é rápido. É preciso criar mecanismos e sistemas capazes de desenvolver medicamentos voltados aos que não podem pagar. Para isso, é necessário que haja ações do setor público e do setor filantrópico.

Agência FAPESP - A solução desse impasse está nas parcerias entre governo e iniciativa privada?
Carlos Morel -
Não se pode esperar que as empresas privadas façam caridade, já que elas precisam dar satisfação aos acionistas. Mas há uma série de tentativas para tentar compensar a falta de interesse da indústria atraindo recursos públicos e de filantropia. O problema é que muito da tecnologia de desenvolvimento de drogas está no setor privado. Além disso, embora sejam ótimas, essas iniciativas ficam muito aquém do que deveria ser feito.

Agência FAPESP - É possível avaliar o tamanho dessa lacuna?
Carlos Morel -
Algumas análises atuais mostram que uma nova droga, desenvolvida pelo setor privado, custa em torno de US$ 1 bilhão. Essa cifra é discutida, mas na literatura mundial a maior parte dos estudos aponta para isso. Além disso, os testes clínicos são muito demorados. Perto disso, o orçamento para doenças negligenciadas é muito baixo. Todas as parcerias existentes atingem apenas a casa dos milhões.

Agência FAPESP - Pode-se dizer também que, além da questão econômica, essas doenças são negligenciadas por falta de vontade política, já que as populações atingidas têm pouco poder de pressão?
Carlos Morel -
Sem dúvida. Uma prova disso é o caso da Aids. Antes de a doença aparecer, o Brasil nunca teve controle para doenças transmissíveis por sangue. Mas a Aids atacou todas as classes e logo o controle foi feito nos bancos de sangue. Rapidamente se conseguiu também uma lei que garantisse a distribuição gratuita do medicamento para a Aids. A doença de Chagas, há 20 anos, também era um exemplo disso: o mapa da distribuição da doença coincidia exatamente com o mapa das pessoas que não votavam e eram analfabetas.

Agência FAPESP - Por que é importante para o Brasil investir na pesquisa sobre fármacos para essas doenças?
Carlos Morel -
O Brasil tem uma posição singular: é um país em desenvolvimento que é afetado tanto pelas doenças de países pobres como pelas de países ricos. A indústria tem a oportunidade de lucrar com medicamentos feitos para os que podem pagar, como na Europa e nos Estados Unidos. Mas também precisamos de fármacos para a população que sofre com doenças tropicais e infecciosas. Só que, ao contrário dos países africanos e asiáticos, que também têm essas doenças, temos capacidade técnica para desenvolvimento desses fármacos. O fornecimento para os outros países que necessitam poderia impulsionar nossa indústria e resolver os problemas da população. Na verdade, vemos uma oportunidade única para o país nessa área.

Agência FAPESP - E essa oportunidade está sendo aproveitada?
Carlos Morel -
Sentimos falta de uma política robusta de ciência e tecnologia que estimule a inovação. Mas há uma série de iniciativas importantes em curso. Em 2006, foi lançado um programa do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], em parceria com o Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, para dengue, doença de Chagas, lepra, malária, tuberculose e leishmaniose. A Fiocruz deverá lançar até começo do ano que vem novo medicamento contra malária, que está sendo testado no Acre e deverá ser exportado para toda a América Latina. Assinamos também um acordo com a empresa Genzyme para pesquisas sobre medicamentos para doenças negligenciadas.

Agência FAPESP - Os problemas de infra-estrutura também são limitantes no Brasil?
Carlos Morel -
Historicamente, no Brasil, trata-se de um problema de falta de uma política industrial capaz de acoplar a ciência e a produção. A infra-estrutura, de fato, não é suficiente, porque a indústria farmacêutica, depois de um longo período de reserva de mercado, foi muito atingida pelo sistema de patentes. Mas o ponto central é que não há incentivo financeiro para combater as doenças negligenciadas.

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