Cidades com graves problemas urbanísticos, como os grandes centros brasileiros, tendem a buscar soluções de sucesso em outros países. A cidade de Barcelona é vista como um dos principais modelos de recuperação e de boa gestão urbanística - uma verdadeira exportadora de soluções. Mas, para Horacio Capel, professor catedrático de Geografia Humana da Universidade de Barcelona, as cidades brasileiras não devem tentar adaptar soluções desse tipo. Um dos maiores críticos do chamado modelo Barcelona, Capel destaca que a capital da Catalunha, embora tenha atraído investimentos, privilegiou o turismo em detrimento da população local. O urbanismo, na opinião de Capel, que é especialista em geografia urbana, história da ciência e desenvolvimento urbano, precisa ser feito "de baixo para cima", isto é, os técnicos devem traçar os planos urbanísticos a partir das demandas sociais. Capel foi criador, em 1976, de uma das revistas científicas mais importantes da área, a Geo Crítica - Cadernos críticos de geografia humana, que dirige até hoje, juntamente com outros quatro veículos. O geógrafo veio para o Brasil coordenar o Colóquio Internacional de Geocrítica, evento idealizado por ele, cuja 9ª edição aconteceu nos últimos dias de maio, em Porto Alegre, com o tema "Os problemas do mundo atual: soluções e alternativas a partir da geografia e das ciências sociais". Em São Paulo, em junho, apresentou a conferência "Patrimônio Histórico e Conservação Ambiental" num ciclo de conferências promovido pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP). Durante sua visita, o geógrafo identificou o maior problema das grandes cidades brasileiras: o desprezo pelos pedestres e o culto do automóvel individual. Diante do trânsito da avenida Rebouças, Capel concedeu à Agência FAPESP a entrevista a seguir. Agência FAPESP - Barcelona é constantemente mencionada como exemplo de recuperação urbanística e de gestão que atraiu investimentos e trouxe desenvolvimento para a cidade, mas o senhor é um conhecido crítico do chamado modelo Barcelona. O que há de errado com ele? Horacio Capel - Primeiramente, devemos reconhecer que muita coisa boa foi feita na década de 1980, depois da volta das eleições democráticas na Espanha. Os problemas eram muitos e as decisões tomadas foram acertadas por muitas razões. Os movimentos populares pressionaram muito por investimentos. Isso foi em frente porque muitos políticos tinham ligações com os movimentos populares como forma de luta contra a ditadura de Francisco Franco [de 1939 a 1975].
Agência FAPESP - O que foi feito nessa época? Capel - Procurou-se melhorar as áreas periféricas. O investimento foi direcionado para lá, com a criação de equipamentos sociais também no centro. Esse acerto, a partir de 1986, teve também investimentos da União Européia. Os Jogos Olímpicos de 1992 também trouxeram investimentos significativos. Agência FAPESP - Quando o cenário começou a mudar? Capel - No decorrer da década de 1990. Os Jogos Olímpicos colocaram Barcelona no mapa mundial de cidades e a obsessão dos políticos por atrair investimentos externos se intensificou. Isso muitas vezes acabou invertendo a corrente dos investimentos, que nos anos 1980 favorecia o cidadão. Não se havia ainda construído moradias populares suficientes quando a cidade foi transformada em mercadoria. Agência FAPESP - Com o direcionamento da cidade para o turismo? Capel - Sim. O êxito do ponto de vista turístico foi muito grande, mas é um tipo de turismo que não traz benefícios para a cidade. Situar a cidade no mapa mundial é bom, mas a população ficou à parte. No momento atual, a questão do debate sobre o modelo Barcelona está estagnado. Tanto os apologistas como os críticos se limitam a defender seus pontos de vista, mas precisamos passar para um debate mais concreto. Agência FAPESP - Em São Paulo se fala muito na revitalização do centro a partir de uma valorização imobiliária. Que lições os paulistanos poderiam tirar da experiência catalã? Capel - Acho que as cidades brasileiras não precisam de modelo. As soluções devem partir de seus próprios problemas, ainda que, claro, possam se inspirar em soluções de outros lugares. Em alguns aspectos, o Brasil é um modelo. Por exemplo, com o orçamento participativo ou o Estatuto das Cidades. As soluções de Barcelona não se encaixam na realidade paulistana. Agência FAPESP - Este parece ser um ponto fundamental: as soluções não são adaptáveis. Capel - É natural que aqueles que conceberam o modelo Barcelona façam propaganda dele e queiram vendê-lo. É evidente que houve êxitos por lá e um dos principais foi mostrar que problemas urbanos podem ser resolvidos. Barcelona também tinha favelas em áreas públicas e onde não se podia construir. A política de investimento público permitiu uma melhora muito grande da habitação, mas a escala de São Paulo é muito diferente. Agência FAPESP - Quais são alguns dos principais desafios para o urbanismo na atualidade? Capel - Tenho a impressão de que os políticos perderam o contato com a realidade social. Eles estão desconectados dos movimentos populares e a participação dos cidadãos no urbanismo é puramente formal. A maneira como se faz o urbanismo deve ser modificada. Os políticos tomam decisões urbanísticas a partir da assessoria de técnicos que acreditam ser donos da verdade por controlar o saber técnico. São especializados em arquitetura e têm de fato conhecimento, mas falta a participação de outros especialistas nos planos urbanísticos: antropólogos, economistas, sociólogos, geógrafos. Agência FAPESP - Seria preciso também ouvir mais a população? Capel - Sim. O fundamental é que precisamos de um urbanismo que se faça de baixo para cima. É preciso definir primeiro os objetivos sociais e urbanos. Em diálogo com arquitetos, com técnicos e com políticos, dando assessoria para os movimentos sociais para que possam ter informação técnica útil para formular demandas. É preciso incorporar a democracia participativa na elaboração dos planos diretores. Para isso os políticos e técnicos precisam mudar de atitude, o que é muito difícil. Entendo a reticência deles. Trata-se de algo muito complicado, mas é para isso que eles são pagos. Agência FAPESP - Na sua opinião, qual é o problema mais crítico dos principais centros urbanos brasileiros? Capel - Em cidades como São Paulo, Salvador e Porto Alegre há um desprezo muito grande pelos pedestres. E há uma cultura do automóvel particular que não pode continuar. A janela do hotel em que fiquei hospedado está voltada para a avenida Rebouças. Pude ver que na maior parte do dia ela está congestionada. Andei muito em São Paulo e verifiquei problemas muito grandes de mobilidade. Há bons ônibus, mas não existe uma opção decidida pelo transporte público. Agência FAPESP - Esse exagero do uso do automóvel é um problema cultural? Capel - A cidade tem áreas para passear com um valor urbano extraordinário, mas os paulistanos vão a todos os lugares em seus automóveis. Eles perderam o gosto pelo passeio. Há automóveis demais. Fiquei impressionado também com o processo de verticalização. Há locais em que havia uma casa para uma família e agora há um prédio de 30 andares. Vemos ruas inteiras assim. Isso é assombroso, porque em um prédio desses há 120 famílias e pelo menos 80 automóveis. Mas a estrutura da rua é a mesma de quando havia uma família com um automóvel. E isso é algo que não pode continuar. Agência FAPESP - O que mais o impressionou em São Paulo? Capel - O Memorial do Imigrante. É uma coisa extraordinária. Um dos museus mais importantes que se pode visitar em todas as Américas. Fica no lugar em que chegava a estrada de ferro que vinha de Santos e trazia os imigrantes. Ali todos se inscreviam em um livro que está disponível no museu e pode ser consultado. Está sendo digitalizado. Pode-se consultar quando chegaram seus antepassados por países ou sobrenomes. É uma das atrações mais importantes em São Paulo. Agência FAPESP - É comum ouvir que a capital paulista não preserva sua memória. Como especialista em patrimônio histórico, o senhor concorda com isso? Capel - Em geral, aqui se valoriza e se respeita o que está ligado à memória da colonização portuguesa, mas o que é feito depois da independência não é preservado. Mas há casos bem piores do que São Paulo. Em Porto Alegre, por exemplo, o centro histórico foi destruído de maneira brutal. Havia edifícios do fim do século 19 até a década de 1930, quando a cidade já tinha grande importância. Edifícios art nouveau, art déco, do começo do racionalismo que eram muito importantes para mostrar que as inovações ocorreram por aqui ao mesmo tempo que na Europa. Aqui há uma tradição de arquitetura magnífica, como no Chile e na Argentina. Agência FAPESP - Qual a importância de se preservar o patrimônio histórico? Capel - Ele é importante para construir o futuro. Patrimônio histórico tem a ver com identidade, com a adaptação de experiências interessantes do passado. Uma linha de pesquisa de grande interesse atualmente na Europa é o patrimônio industrial. O estudo dos restos arqueológicos industriais, incluindo linhas ferroviárias, portos e aeroportos. A região central de São Paulo tem uma paisagem fabril extraordinária, que recupera a memória paulistana. Toda aquela região tem um panorama industrial de muito valor, que muitas vezes os políticos não sabem proteger. Ali foram dadas soluções técnicas para a iluminação e a instalação do processo industrial que têm muito interesse. Quando isso sumir, desaparecerá também a memória histórica do trabalho industrial em São Paulo. Vai parecer que a cidade nasceu como centro financeiro, mas sua história está apoiada em um trabalho agrícola da época do café e em um trabalho industrial muito intenso. É importante também a memória da moradia operária.
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