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Contos
09/06/2007 - 17h45
O colecionador
Edmundo Pacheco
 

Mailiw levantou-se cedo, naquela segunda-feira. Mais cedo que o costume. Chovia e, por mais que tivesse disposição, de nada adiantaria ir ao trabalho. Era vendedor, gostava do ritmo do trabalho, mas não das segundas-feiras chuvosas, quando sair de casa seria desperdício.

Muito menos gostava das noites de domingo mal-dormidas. Menos ainda quando as dúvidas assolavam estas noites, afugentando o sono; das pernas reclamando das caminhadas entre o quarto e a sala, no escuro; do dedo doendo da topada no canto do sofá.

Arrastou o corpo dolorido mais uma vez em direção à sala, abriu lentamente as grossas cortinas de veludo vermelho (vermelho como tudo na vida de Rosa) e jogou os olhos em direção à rua. Lá embaixo, na calçada, o mundo vivia mais uma segunda-feira. Aqui dentro, no 12º andar, Mailiw vivia a sua segunda-feira particular, indelével, única e última.

Talvez tivesse sido melhor não acordar na tarde de domingo. Perderia apenas o jogo, não a vida. Mas acordou. E acordou cedo demais. Sem o que fazer enquanto a televisão relutava em colocar em campo seus heróis prediletos, Mailiw resolveu ler a Revista de Domingo. Nada preocupante. Fofocas, comentários, historietas da vida real... ou não? Ali nascera a dúvida que acabara com o jogo antes de começar, com o resto da tarde, da noite, da vida.

Era vendedor. E gostava do ritmo do trabalho. Vendia livros e, por conseguinte: sonhos. Mas, o que gostava mesmo, era de vender ilusões. Alto, de cabelos pretos agrisalhados e tez muito branca, com dois olhos negros, penetrantes, incrustados, Mailiw tinha algo que atraia as mulheres.

Colecionou todos os modelos, tipos e tamanhos. Nunca tivera preconceito. Mas nunca, jamais, traíra Rosa. Amava-a e, à sua maneira, considerava-se fiel ao extremo. As outras eram coisas, objetos da coleção. Imediatamente “vaporizadas”, como gostava de dizer aos amigos.

Vaporizava tantas, que a palavra se transformou em brincadeira e até cumprimento:
- E aí Mailiw, vaporizando muito?
- Vaporizando, como sempre!! – respondia, risonho, ao cruzar a rua.

O problema, é que o vaporizador começou a dar defeito numa manhã fria de inverno.

Mailiw fixou os olhos negros nos castanhos de Vindi. Como era costume, marcou a vítima a ferro. E iniciou seu bailado: telefonemas em horas impróprias. Bons dias com flores. Boas tardes com sorrisos e carinhos. Boa noite com carícias e amor. Ótima noite. Maravilhosa noite. Inesquecível noite e uma vaporização matinal.

Rosa, mais uma vez, o esperava, vermelha, saudosa, da “viagem”. E Mailiw amou-a, como jamais amaria alguém.

Era sua Rosa. Vermelha. No quarto vermelho por ela decorado, onde se respirava tesão. E onde jamais entraria o vaporizador e sua coleção.

Mas o vaporizador se quebrara. E Vindi negou-se a fazer parte da coleção.

Dia após dia, sentiu falta do bailado, dos bons dias e, principalmente, da boa noite. Frustrada, vestiu-se de vingadora e saiu a campo. Descobriu nome, endereço, telefones, senha do cartão, tipo sangüíneo, número do sapato, a coleção e o vaporizador.

Tentou tê-lo novamente. Tentou... Tentou... Tentou... Tentou... Ameaçou... Chantageou... Humilhou-se...

E Mailliw resistiu. Ignorou... Ignorou... Ignorou... Como era costumeiro.

Como última saída, Vindi resolveu roubá-lo. Se não ele da Rosa, a Rosa dele. Descobriu que, apesar de tanto amada, Rosa não era feliz. Faltava-lhe algo. Vasculhou a vida nada cor-de-rosa de Rosa, pontos fracos, medos e segredos. E armou o contra-ataque.

Quase mil quilômetros distante, o irmão de Vindi, Carvalho, recebeu a ficha completa de Rosa. Nome, endereço, telefones, senha do cartão, número do manequim, gostos, desgostos e pontos de maior tesão.

E assim, iniciou-se o bailado do Carvalho em torno da Rosa. E Rosa gostou.

Vindi fazia a ponte, vigiava os passos de Mailiw e Rosa, e Carvalho, mesmo distante, fazia-se presente a cada instante. Mandava rosas, vermelhas, claro. E recados de amor, de levar Rosa ao rubor. E tanto fizeram os irmãos, brincando de vingança, que a Rosa, sedenta, finalmente pôde experimentar o carvalho. E amou. E descobriu que nunca fora realmente amada.

O quatrilho da doce vingança de Vindi estava completo. Ou quase. Vindi nem assim conseguiu sair da coleção. Relutou, lutou, ameaçou. Quase foi às vias de fato.

Não se importava mais em perder marido e filhos, esquecidos no arquitetar e executar dos planos mais mirabolantes. Vindi precisava sair da coleção.

E teve, finalmente, mais uma de suas grandes idéias: escrever um conto. E contar ao mundo, mesmo que de forma cifrada, que chifrara e fora chifrada e, principalmente, que já não lhe importava mais nada, se não o amor do colecionador.

Apesar de não ser escritora, o texto ficou bom, e foi aceito pela Revista de Domingo. Lida pelos insones futebolistas, nas tardes domingueiras.

Mailiw reconheceu o nome da autora: Vindi Care. E os detalhes deram certeza: era “O colecionador”, título e personagem.

Começara sua noite de terror.

Rosa, agora branca, sobre a cama vermelho-sangue, confessara fazer parte de outra coleção.

Agora, nesta manhã chuvosa de segunda-feira, Mailiw olhava a calçada lá embaixo, enquanto vivia sua dor e sua última dúvida: vaporizava os irmãos ou pulava pela janela...


Nota do Editor: Edmundo Pacheco é jornalista, editor-chefe da TV Guairaca (afiliada Globo) Guarapuava, PR.

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