Posso lembrar com detalhes daquele beijo, no portão da sua casa, o sol do meio-dia de trincar bico de galo, o primeiro gole de água morna na torneira do jardim, uma preguiça dos diabos. Roubado, desajeitado, assustado, o beijo tinha um ruidoso gosto de fruta madura, trazia nele a orgia da gula que havíamos exercitado durante a manhã no pomar vizinho, vinha sabendo a manga. Depois daquele beijo eu nunca mais fui a mesma e nem você. Tínhamos, de alguma forma, deixado para trás a criança e entrado no perigoso terreno da juventude, já não se poderia brincar de esconde-esconde impunemente. Tínhamos, de alguma forma, envelhecido décadas num minuto, embaixo daquele sol escaldante, pulado para fora da infância num parto prematuro. As sementes de ilusão já não eram tão numerosas, a fantasia se tingira de cores mais fortes, as cores neutras se esvaindo em águas de forte correnteza. A renúncia aos brinquedos ainda iria demorar algum tempo, você e eu deixaríamos escapar a luxúria porque não resistiríamos a um bom desafio de queimada, cada bolada vigorosa valia por mil carícias. Éramos crianças. Cada pulada de muro, cada corte no pé, cada metro andando na enxurrada satisfaziam, realizavam e nos premiavam com horas e horas de sono de reis e rainhas, profundo como só aos nobres se permite. Na escola, você me deu a fruta. Conhece marolo? Nunca ouviu falar? Prova. Uma fruta silvestre, quase desmaiada em sua busca infinita de uma ata. O marolo é uma ata que não deu certo. Ata é fruta do conde, bobo. Obrigada. De nada. Mão estendida. Foi na calçada que as duas mãos se encontraram em agradecimento à fruta. Um toque. Um arrepio. Depois disso fui premiada com o gol do time de futebol. Poderia jogar, enfim, entre os meninos. Você evitava que os outros se aproximassem. Era um muro, uma barreira intransponível e insondável, ganhamos de três a zero. Defesa menos vazada do campeonato: eu no gol, você, o beque. Vieram outros muros, enxurradas, invasões a pomares alheios, como se invadíssemos um país inimigo, na busca incontida de novos sabores, ameixas amarelas, cajus, macaúbas. Andanças, sorvetes infinitos, de milho verde, na rua de baixo. Milho cor do sol, de nascer do sol, meio pálido, cálido, esquálido. Na rua de cima, o trem apitava, em sua agonia de morte, parecia que ele sabia que ia morrer. E nós sabíamos que aquele tempo ia passar, cada minuto era curto, cada suspiro um adeus, como se houvesse ali, na porta da frente, a partida definitiva, aqui, agora. O olhar esperto, mas triste, como olhar de tartaruga. A pele verde oliva, duas jabuticabas então seriam os olhos. Não vou dizer seu nome. Na praça, à noite, eu de vestidinho bordado, criança mesmo. Uma criança que aquele beijo tinha abortado. Nascera a mulher. Inconsciente. No toque de mão. No banco de cimento. Na história que estava sendo escrita, sem que nós dois soubéssemos. Nas armadilhas que enfrentaríamos anos depois. Os dois. Atrás do cemitério catando gabiroba, infantes, o cerrado oferecia também pitangas, araçás, anonas, pindaíbas e amoras selvagens. Quem não provou perdeu metade da vida. Bem feito! Bem feito! Bem feito! O sorriso branco, os dentes brancos, eu também poderia ter adivinhado o que o futuro nos reservava, como um jogador aflito tenta adivinhar o cavalo vencedor do próximo páreo, mas uma criança nem pensa nisso. Corre de um lado para o outro, experimenta as sensações mais cruéis e deliciosas, passa por elas como água debaixo da ponte, retoma, repassa, dorme o sono dos justos e esquece feito o pássaro que abandona um ninho e constrói um novo logo adiante. Céu-inferno-céu-inferno-céu-inferno-céu-inferno. Pula, pula amarelinha, casa um, casa dois, casa três... vocês sujam toda a calçada com estes desenhos de amarelinha riscados com tijolo. Pega o esguicho e lava. Neste minuto. Que coisa! E não desaparece de novo, que está na hora de tomar banho e jantar. Vamos brincar de circo. Mas tem que ser na sala. A cortina abre e lá atrás estamos nós, excêntricos atores e atrizes, perfeitos, representando pluft, o fantasminha. Quem brincou, brincou, quem não brincou, não brinca mais. O tempo do ensaio acabou. O pluft tinha um amiguinho, uma amiguinha. E eles se abraçavam, no final. E havia os agradecimentos, todo mundo de mãos dadas, os adultos batendo palmas. As mãos se mantiveram unidas por alguns anos. Seria ainda o ensaio? Sem palavras, os beijos arderam em chamas nos bancos da praça. O cenário não era o mesmo. Víamos tudo diferente. Não havia sabor nenhum no sorvete de milho verde. Só o sabor do seu beijo. Do meu beijo. Os olhos fechados, colhendo a desordem dos sonhos, o coração batendo forte, a gente suava mais do que a caldeira da máquina a vapor que apitava para embalar nosso temor inconsciente. O céu parecia mais cheio de estrelas. Pontilhado? Cheio. O melhor era ganhar a rosa que você apanhava no jardim de um outro menino. Mil jardins houvessem, mil rosas haveriam. A delicadeza do moleque de quem nada se esperava. Daquele moleque. Não poderia haver outro. Aventura, fantasia. Pudor, despudor. Epidemia. Chicletes. Guaraná caçula. Baile com a orquestra que chegava de ônibus. O filme do cinema também chegava de ônibus. E é proibido até dezoito, somos barrados na porta. Vitrola. Rádio. Por que o travo foi repousando em nossos lábios? Prevíamos o futuro com uma nitidez infantil. Adiávamos o drama com plena certeza de que ele era inevitável. Fingíamos não conhecer o que já conhecíamos há mais de um milhão de anos. O caminho a percorrer estava traçado desde sempre, cada curva e cada armadilha da estrada sempre pairando sobre nós. Uma delas nos laçaria. Esgotávamos nossa paixão juvenil em abraços e ternura, em transpiração e ansiedade, com a evidência transparente da desesperança. Éramos profundamente felizes e profundamente tristes. Éramos desesperadamente adultos e não havia ninguém no mundo mais criança. Os dois. Nunca mais nos vimos depois daquela noite em que o sereno começou a cair frio sobre nossos ombros adolescentes, gelando até os ossos. Tinha chegado o momento. Nota do Editor: Laís de Castro é jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Hoje é diretora de redação da revista Dieta Já, da Editora Símbolo. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e agora lançou seu primeiro livros de histórias para adultos: "Um Velho Almirante e outros contos", pelo selo ARX (Siciliano).
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