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Contos
20/02/2007 - 07h23
Na ponte das barcas, junto ao cais da praça
Ruy Paneiro
 

- Apareceu uma mulher morta boiando perto da ponte. Ela tá com um facão enterrado até o cabo nos peitos.

A notícia chegou pelo Renan. Ele nem parou a bicicleta ao passar pelo portão da minha casa e gritar a novidade. Seguiu pedalando rua abaixo. Renan era um dos garotos que mergulhavam das barcas de Paquetá comigo.

Meia hora antes, estávamos juntos, com outros meninos, roubando frutas da chácara do empresário João Silva, dirigente do Vasco da Gama.

Larguei os sapotis e as mangas num canto da varanda de casa e disparei a pé pela Rua Comendador Lage, tentando alcançá-lo. O chão da rua, recoberto de saibro para evitar lama em dia de chuva, ainda estava quente por causa do sol. E as pedrinhas que se soltavam do saibro machucavam os calcanhares na corrida.

Três PMs tinham acabado de sair da delegacia, a uns 200 metros lá de casa. Um deles era o Costa, cabo esperto que na semana antes tinha conseguido me prender depois de eu pular da barca do meio-dia. Diminuí a corrida, emparelhei e cumprimentei:

- Oi, Costa.

- Fala, rucinho.

- Tá indo pra lá?

- Tô.

- Então, se mexe que o doutor vai cortar sua folga se você chegar atrasado.

Safado! - pensei. Dei o maior duro nadando quase três minutos por baixo d’água para ele não me ver e o fdp me descobre escondido atrás da canoa do Heraldo: "Rucinho, você tá preso. Vai em casa, toma banho, almoça e se apresenta no Distrito".

Prisão, em Paquetá, era assim. Naquele dia fiquei de castigo na janela da delegacia mais de duas horas. Foi preciso minha irmã ir lá me soltar, fingindo fúria assassina. E eu tive de prometer que não ia mais mergulhar do teto das barcas. Tudo conversa fiada, jogo de cena.

Agora o Renan já estava parando a bicicleta na praça. Eu acabava de passar pelo muro branco da chácara do João Silva. No ar, o cheiro forte dos sapotis mordidos de morcego que estavam esborrachados no chão depois da guerra que Jorginho Gafanhoto, Pepita, Dom Pedrito, Luiz Carlos Poeta, Renan, Heraldo, Dutra, Zuca e eu tínhamos feito no final do assalto às fruteiras da casa.

A Praça Pintor Pedro Bruno, que a gente chamava de praça da ponte e era um dos nossos lugares de mergulho, estava cheia. Todo mundo querendo ver o corpo trazido pela maré enchente para Paquetá e estendido pelos policiais a um metro da beira.

A mulher aparentava menos de 30 anos. Boca e olhos abertos causavam forte impressão. Difícil afirmar que em vida tivesse sido bonita. Era morena, tinha cerca de l,60 m de altura, cintura e pernas bem delineadas. Seios rijos.

Entre eles, como o Renan antecipou, um facão de cozinha cravado quase até o cabo.

O delegado, doutor Campos, conversava com dois marinheiros da lancha e eu me aproximei como quem não quer nada para ouvir o que eles falavam.

- ...preso em flagrante. Era amante dela. Eles estavam numa canoa e alguém viu quando ele deu as facadas e ela caiu dentro no mar. Afundou e sumiu. Isso foi ontem e ela só boiou hoje - dizia o delegado.

- Já caiu morta ou morreu logo depois, porque não parece ter bebido água - disse um dos marinheiros. Dá pra ver pela barriga, que não inchou.

- E ela se defendeu bastante - disse o doutor Campos. Vocês viram como os braços e mãos dela estão cortados?

- É... e por quê foi que eles brigaram? - quis saber o mesmo marujo.

- Parece que foi por ciúme. O pessoal lá de Itaóca diz que o sujeito é ciumento e brigão. Anda sempre de peixeira e volta e meia está metido em confusão. É pescador, mas gosta mesmo é de uma purinha e de um carteado - acrescentou o delegado.

- É, doutor, pé-de-cana com ciúme é fogo na roupa - comentou o segundo marinheiro, até então calado.

- O senhor dá uma licencinha, doutor? Nós vamos até ali tomar um café e comprar cigarro - pediu um dos marinheiros.

Eu também me afastei para ver o corpo ser transferido da praça para o convés dianteiro do barco. Os braços da mulher estavam duros, voltados para frente, bastante cortados como disse o delegado.

Os talhos mostravam a carne esbranquiçada, pelo contato com a água do mar. Alguns cortes tinham quase um dedo de profundidade. Pelo que eu soube, ela boiou de barriga para baixo. Alguns peixes e siris andaram mordiscando as feridas.

Os homens da Polícia Marítima colocaram o corpo da mulher na proa da lancha. Por três ou quatro vezes, eles forçaram seus braços para baixo, tentando fazer com que ficassem paralelos ao corpo.

Não conseguiram. Os braços subiam, num ângulo de 90 graus. Os policiais acabaram desistindo.

- Rigidez cadavérica, explicou um deles.

Então trouxeram da cabine uma lona bege manchada e a desdobraram. Depois a estenderam sobre corpo e o cobriram da cabeça às canelas. Os tornozelos e pés da morta ficaram visíveis.

Com a lona por cima e por causa dos braços esticados, o corpo parecia uma tenda de acampamento, dessas em forma de pirâmide.

Um dos tripulantes recolheu os cabos que prendiam o barco ao cais. Os dois marinheiros que tinham ido ao botequim pularam para bordo e se sentaram no banco da popa junto ao casco.

O piloto deu ré, manobrou e acenou para o delegado. O doutor Campos fez sinal com a mão. Ele estava montado numa bicicleta com o pé esquerdo apoiado no pedal e o outro no chão. Desde que tinha sido transferido para a ilha, um ano atrás, aquele era seu meio de transporte predileto. Fosse para trabalhar ou andar a toa, olhando as mulheres.

A embarcação ficou com a popa virada para a praça e a cabine obstruiu a visão. Cerca de 500 metros adiante, onde ela dobrou à direita para contornar a Ilha dos Lobos e ficou de estibordo para nós, pôde-se ver novamente o corpo sozinho na proa.

Até sumir por trás do Morro das Gaivotas em direção ao Rio de Janeiro, a embarcação e sua carga foram seguidas pelo olhar parado das pessoas que estavam na praça. Só então os adultos começaram a se dispersar de volta a seus afazeres.

Os garotos ficaram. Àquela hora, a água do mar costumava estar morna e nós mergulhávamos até oito da noite.

Mas naquele entardecer quente de janeiro, enquanto a desconhecida morta a facadas seguia viagem para o Instituto Médico Legal do Rio, nenhum menino de Paquetá mergulhou da ponte das barcas.


Nota do Editor: Ruy Paneiro é jornalista, trabalhou no Jornal do Brasil. Atualmente, trabalha como freelancer e colabora com jornais eletrônicos, como o Montblaat.

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