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Contos
21/10/2006 - 09h57
A morte chegou com a maré enchente
Ruy Alberto Paneiro
 

- Apareceu uma mulher morta boiando perto da ponte. Ela tá com um facão enterrado até o cabo nos peitos.

A notícia chegou pelo Renan, um dos garotos que pulavam das barcas de Paquetá comigo. Ele nem parou a bicicleta ao passar pelo portão da minha casa e gritar a novidade. Seguiu pedalando rua abaixo.

Disparei a pé pela Rua Comendador Lage, tentando alcançá-lo. O chão da rua, recoberto de saibro para evitar lama em dia de chuva, ainda estava quente por causa do sol.

As pedrinhas que se soltavam do saibro machucavam os calcanhares na corrida. Não consegui alcançá-lo.

Logo o Renan parou a bicicleta na Praça Pintor Pedro Bruno, que a gente chamava de praça da ponte e era um dos nossos lugares de mergulho. Umas 50 pessoas estavam lá para ver o corpo trazido pela maré enchente e estendido pelos policiais a um metro da beira.

A mulher aparentava menos de 30 anos. Boca e olhos abertos causavam forte impressão. Difícil afirmar que em vida tivesse sido bonita. Morena, tinha cerca de l,60 m de altura, cintura e pernas bem delineadas. Seios rijos.

Entre eles, como o Renan antecipou, um facão de cozinha cravado quase até o cabo.

O delegado, doutor Campos, conversava com dois marinheiros da lancha e eu me aproximei como quem não quer nada.

- ...preso em flagrante. Era amante dela. Eles estavam numa canoa e alguém viu quando ele deu as facadas e ela caiu dentro no mar. Afundou e sumiu. Isso foi ontem e ela só boiou hoje - contava o delegado.

- Já caiu morta ou morreu logo depois, porque não bebeu água. Dá pra ver pela barriga, que não inchou - disse um dos marinheiros.

- E ela se defendeu bastante. Vocês viram como os braços e mãos dela estão cortados? - observou o delegado.

- É... e por que foi que eles brigaram? - quis saber o mesmo marujo.

- Parece que foi ciúme. O pessoal lá de Itaóca diz que o sujeito é ciumento e brigão. Anda sempre de peixeira. Volta e meia está metido em confusão. É pescador, mas gosta mesmo é de uma purinha e de um carteado - acrescentou o doutor Campos.

- É, doutor, pé-de-cana com ciúme é fogo na roupa - comentou o segundo marinheiro, até então calado.

- O senhor dá uma licencinha? Nós vamos até ali tomar um café e comprar cigarro - pediu um dos marinheiros.

Eu também me afastei. Fui para ver o corpo ser transferido da praça para o convés dianteiro do barco. Os braços da mulher estavam duros, voltados para frente, bastante cortados como disse o delegado.

Os talhos mostravam a carne esbranquiçada, pelo contato com a água do mar. Alguns cortes tinham quase um dedo de profundidade. Pelo que eu soube, ela boiou de barriga para baixo. Alguns peixes e siris andaram mordiscando as feridas.

Os homens da Polícia Marítima colocaram o corpo da mulher na proa da lancha. Por três ou quatro vezes, eles forçaram seus braços para baixo, tentando fazer com que ficassem paralelos ao corpo.

Não conseguiram. Os braços subiam, num ângulo de 90 graus. Os policiais acabaram desistindo.

- Rigidez cadavérica, explicou um deles.

Um marujo trouxe da cabine uma lona bege manchada e a desdobrou. Depois a estendeu sobre corpo e o cobriu da cabeça às canelas. Tornozelos e pés ficaram expostos.

Com a lona por cima e por causa dos braços esticados, o corpo parecia uma tenda de acampamento, dessas em forma de pirâmide.

Outro tripulante recolheu os cabos que prendiam o barco ao cais. Os dois marinheiros que tinham ido ao botequim pularam para bordo. Sentaram no banco da popa junto ao casco.

O piloto engrenou a reversão e deu ré. Acenou para o delegado. O doutor Campos respondeu com uma continência meio displicente.

Ele estava montado numa bicicleta com o pé esquerdo apoiado no pedal e o outro no chão. Parecia bem à vontade.

Desde que tinha sido transferido para a ilha um ano antes, aquele era seu meio de transporte predileto. Fosse para trabalhar ou circular à toa, olhando as mulheres.

O piloto deu três toques rápidos de sirene e arrancou. Uns 300 metros adiante, contornou a Ilha dos Lobos, à direita. A embarcação ficou de estibordo para nós. A lona tremulava sobre o corpo sozinho na proa.

As pessoas acompanharam tudo com olhar parado. Até que a lancha sumiu com sua carga por trás do Morro das Gaivotas, em direção ao Rio de Janeiro. Só então os adultos começaram a se dispersar de volta a seus afazeres.

Os garotos ficaram. Àquela hora, com maré no ponto mais alto, a água do mar costumava estar morna. Muito agradável. No verão, nós mergulhávamos até oito da noite.

Mas naquele entardecer quente de janeiro, enquanto a desconhecida morta a facadas seguia viagem para o Instituto Médico Legal do Rio, nenhum menino de Paquetá mergulhou da ponte das barcas.


Nota do Editor: Ruy Alberto Paneiro é jornalista, trabalhou no Jornal do Brasil. Atualmente, trabalha como freelancer e colabora com jornais eletrônicos, como o Montblaat.

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