A noite estava perfeita. O clima agradável, o trânsito fluía... conseguiram vaga assim que chegaram ao restaurante. Os dois nem seguravam o sorriso, que insistia em escapar pelo canto da boca. A banda tocava uma música romântica. A luz era perfeita. Escolheram a mesa do fundo, perto da janela. Ele estava radiante. ‘Agora vai’, pensou enquanto mirava a fêmea, alvo de tantos estratagemas, ensaios e micos, diga-se. De emprego novo, estava mo-ti-va-do. Era uma questão dela dizer “sim”. Pronto. Em 5 minutos sairiam dali direto para o apartamento dele, onde poderiam gozar da felicidade merecida. Era quase uma idéia fixa que ele se esforçava para não ter. Ela tinha um ar de mistério, passava por uma fase de transição. Separada há dois anos, experimentava a primeira relação parecida com um começo de namoro. Tudo estava ainda na fase da pesquisa, queria conhecer melhor o pretendente e também descobrir o que de fato sentia por ele. Contudo, estava contente por ter aceito o convite. Não se sentia exposta, pelo contrário, estava bem ali. Enfrentava finalmente essa espécie de resistência, estava de novo em companhia de um homem numa ocasião social. Falaram de amenidades a maior parte do tempo. A qualquer olhar mais incisivo dele ela desviava o dela, e com graça emendava outro assunto. Em um momento de distração ele a segurou pela mão e disse um elogio. Ela agradeceu, e num misto de suavidade e firmeza retirou a mão. De volta, despediram-se no portão. A vizinhança marcava junto. “Ela saiu de novo com aquele rapaz”, era o comentário comum na esquina. O buchicho corria rápido. Os homens o levavam para o trabalho para dividi-lo com os colegas. As mulheres tinham à mão o poderoso telefone. E não raro essas maledicências chegavam aos ouvidos do ex-marido, que entre constrangido e raivoso procurava mudar de assunto. À noite, na casa da mãe para onde voltara logo que terminou o casamento, ficava pensando naquilo. “Aquela ingrata dizia que me amava”. E o som de Zezé di Camargo e Luciano em cima do criado mudo. Não era o tipo de sujeito capaz de matar o rival. Não tinha o orgulho ferido, não sentia a honra diminuída, nada disso. Era dor de cotovelo mesmo. Ainda gostava dela e algo lhe dizia que ela também ainda nutria por ele algum sentimento. A mulher dominava os dois homens. Ela tinha que dar conta do serviço de casa, cuidar do filho. Trabalhava à tarde na escola do bairro. A mãe dela morava numa cidade vizinha, para onde ia na maioria dos finais de semana. A rotina não mudara tanto a não ser quando era tomada por pensamentos assustadores ou vulgares, e intimamente desejava proteção. Queria apenas ser mulher, não heroína. E assim foi por meses, o “namorado” muito atencioso. Um ótimo companheiro – embora travasse uma luta brutal contra a ansiedade e o desejo de possuí-la. O ex-marido ficava na dele: inconformado, mas sem perturbar ou aparecer sem ser convidado. O garoto aceitava bem o novo amigo da mãe, mesmo que preferisse o pai. Com o tempo as coisas iam se ajeitando. Naquele fim de semana ela não iria para a casa da mãe. Queria dar uma boa faxina no sábado de manhã, à tarde iria ao shopping e depois dormiria cedo. No domingo, convidaria o namorado para um almoço íntimo. O filho ia passar o dia fora, no clube com a família de um amigo do colégio. Ligou para o amigo, que ficou todo animado como sempre. Na verdade ela não gostava muito dessa animação toda, mas... o que fazer? O ex-marido trabalhou na sexta, e passou o sábado remoendo os pensamentos. Tinha ficado sabendo do jantar e agora escutou o boato do almoço. O rival também arquitetava um plano infalível. Noites e noites de tentativas quase sempre inúteis. Mas ela mesma dizia que, quando fosse a hora saberiam aproveitar. Era chegado o momento. Os dois finalmente celebravam aquele momento especial. Ela surgiu de banho tomado, um vestido florido, levemente transparente. "Meu bem, pega a cerveja enquanto eu ligo o som". Ele sentiu um arrepio na espinha. Jamais fora tratado dessa maneira dentro daquela casa. Tinham privacidade e, o mais importante, finalmente pareciam querer aproveitá-la juntos. Nesse final de manhã agradável, o sol dava brilho à grama verde do quintal depois da chuva da madrugada. O casal ergue um brinde no centro da sala, e ao aproximar dos copos... Tschack! O som do cruzar de tesouras corta os acordes de "Detalhes", e Roberto Carlos deixa de ser o tema da conversa. "Quem está aí?", ele pergunta. "Não sei!", ela responde. Da janela, o ex-marido com ar bem disposto emenda: "Combinei de cortar a grama, lembra?". Da calçada, o vizinho da frente pergunta: "Por onde tem andado?", ao que ele diz que anda cuidando da vida e aproveitou o domingo para um serviço que há tempos vinha adiando. Ela o chama para uma conversa e o amigo espera no sofá. O casal vai conversar na área de serviço e o amigo resolve ir embora. Ela explode de raiva, xinga, diz que ele não devia ter feito aquilo e entra. A caminho do portão ele se volta a tempo de vê-la na janela. Está simplesmente linda naquele vestido. "Você não desiste", ela diz, com um jeito manhoso. Ele pergunta se pode terminar o serviço. Acaba ficando para o almoço. Ela decide não perder a tarde, ainda que tudo continuasse mal resolvido. Antes assim. Nota do Editor: Marcos Alves é jornalista e diretor de vídeos. Textos para Impressos, eletrônicos e também para acordar, dar voz à alma. Gerente de Jornalismo, editor e repórter da EPTV Sul de Minas. Também foi repórter do impresso “O Tempo”, em Belo Horizonte. Em 2003, uma pausa das redações, vieram os trabalhos independentes, a maioria em vídeo. Bom para abrir o leque. De volta ao trecho, Editor de texto na TV Riosul em Resende/RJ. Atualmente é editor-chefe do Jornal Minas 1ª Edição, da Rede Minas de Televisão, emissora da Rede Cultura. Formado em Jornalismo pela Fafi-BH, atual UNI-BH, em Belo Horizonte.
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