Peguei o táxi na Lagoa, em frente ao meu edifício. - É para a Buenos Aires, chefe. Altura do Mercado das Flores. - O senhor quer que eu pegue o Rebouças ou vou por Botafogo? - Prefiro o Rebouças. Botafogo deve estar horrível por causa das aulas. O táxi seguiu pela Epitácio Pessoa e entrou no túnel. À saída, no Rio Comprido, o motorista torna a perguntar: - Pego o elevado ou vou por baixo? - Pega o elevado, chefe. A gente sai direto na Presidente Vargas. Já na rampa de acesso ao elevado, o motorista olha para a direita e aponta na direção de umas casas no morro da Rua Santa Alexandrina. - Eu moro ali, doutor. Tá vendo aquelas casas ali em cima? Com esse sol, a patroa deve estar quarando minha roupa branca. Eu sujei no serviço de ontem e tem umas manchas que pra sumir mesmo, só botando muita água oxigenada, muita água sanitária e depois deixar quarando, quarando e molhando... - É? Como é que você chega lá? - perguntei, porque não consegui ver acessos aos barracos; só vi construções entre os barracos e a rua naquele trecho. - Tem uma escadinha ao lado daquela casa amarela. Tá vendo a casa? Torço o pescoço e olho pelo vidro de trás. Reconheço a casa amarela. - Ah, sei qual é. O armarinho do seu Emílio não era ali? - Era... Ainda é, doutor. O senhor conhece, é? Vejo a expressão de surpresa nos olhos arregalados do motorista. Ele presta atenção pelo retrovisor. Parece que tenta se lembrar de mim. - Conheço. O seu Emílio tinha duas filhas meio turquinhas... Não era lá no alto da escadinha que moravam o Luiz, o Juca e o Manoel? - Doutor, o senhor conhece mesmo! Eles são meus cunhados. Eu casei com a irmã deles, a Célia... - Ah, eu lembro... Era a mais nova... E como é que eles estão? - Tão bem, doutor. O Luiz casou e está morando em Caxias. Trabalha na prefeitura de lá. O Juca ainda mora aí com a mãe deles. Voltou a treinar boxe. Tá pesando 110 quilos. Continua mexendo com ouro e prata. Compra, vende, faz aliança e anel. Ele tem até uma sala ali no Mercado das Flores, em cima de um restaurante. Tá bem, ele. Quem não está muito legal é o Manoel. Precisou se internar em Jacarepaguá. Está com tísica. - Humm... coitado. Ele parou de beber? - Pára mas volta, sabe comé, doutor. Bebe, não come... Mas o senhor morou por aqui, doutor? O senhor conhece todo mundo... - Morei. Nasci aqui mesmo, na Avenida Paulo de Frontin. Vivi aqui 30 anos, só mudei quando casei. O motorista só me olhando pelo retrovisor. - Ah, tá explicado. E agora que o senhor falou, eu acho que estou lembrando do senhor... O senhor ia muito na Rua Campos da Paz? - Ia. Eu tive uma namorada que morava lá. - Uma baixinha, cabelo preto, né? - É. - Mas o senhor não casou com ela, não é, doutor? - Não. Faz tempo que a gente namorou. Só de casado eu tenho oito anos e foram mais cinco de namoro. No mínimo uns 14 anos que acabou o namoro com a baixinha. - E no tempo da baixinha o senhor fazia uma fezinha nos cavalos. Lá no ponto da Campos da Paz... Não fazia? - Fazia. Eu quase sempre perdia uns trocados naquele bookmaker... o Domingos. - E o senhor era bem garoto, né, doutor? - É. Eu tinha uns 14, 15. Comecei a jogar muito cedo. Mas também parei cedo. - Fez bem, doutor. Jogo só ganha a banca. O senhor não lembra de mim, não? - Olha, chefe, você não me é estranho... - Baianinho, doutor. Eu sou o Baianinho. Eu fazia uns serviços pro dono do ponto... - Baianinho... Baianinho... É... Eu acho que estou me lembrando de você. Mais rápida que o comando rewind, minha memória me levou de volta a uma tarde em que eu estava no bookmaker da Campos da Paz. Um páreo da domingueira estava sendo disputado, quando as pessoas começaram a correr em direção à Rua Aristides Lobo. Pensei que era batida policial e corri também. Bem na porta da farmácia do seu Abelardo, que ficava na esquina, um homem caído tremia como se estivesse em convulsão. Do pescoço dele, o sangue saía em esguichos e tinha formado uma poça com mais de um metro de diâmetro. Da poça, o sangue escuro descia pelo meio-fio e atingia a sarjeta, por onde escorria em direção ao bueiro. Em agonia, o homem fazia um ruído esquisito, meio rouco, que vinha da garganta. Alguém comentou em voz baixa atrás de mim para outra pessoa: "Foi o Baianinho. Ele pegou uma bicicleta e saiu pedalando tranqüilo com a navalha na mão". Então, eu o vi de relance, a uns 150 metros dali, todo vestido de branco. Parecia um pai de santo. - É, doutor... Naquele tempo, tinha muito bicheiro querendo tomar o ponto do outro. E eu tinha muito serviço ali. O senhor é advogado, doutor? Policial? - Er... Não, não. Sou jornalista, mas trabalho com publicidade. - Mas o senhor foi criado no Rio Comprido, me entende. Pra o senhor ter uma idéia, eu respondi 32 acusações. Fui a julgamento por cinco. Tudo 121. Só fui condenado por uma. Peguei oito anos, que eu era primário. Saí com três. Aí, casei. O dono do ponto me ajudou, sabe como é, comprei esse carro aqui. O táxi começa a descer a rampa do elevado na Cidade Nova para, mais à frente, na Rua de Santana, pegar a Presidente Vargas. Em menos de cinco minutos já estamos contornando a Rio Branco. - Dá para viver, é mais calmo, não é che... Baianinho? - É. Dá pra viver. Mas esse negócio de mais calmo é relativo. - Por quê? Problema de assalto? - Não, doutor. Que assalto... É o homem lá, né? Volta e meia, ele me chama para um serviço. Ainda tem muito safado por aí, doutor. Turma do tóxico, da casa de massagem, policial safado. Isso não acaba nunca. Ele me chama, eu ajudo. Uma mão lava outra. E tudo bem. - É o mesmo patrão, desde aquela época? - Bom, quem manda agora é o filho dele, que mexe com as maquininhas de moeda. Mas de vez em quando ele me pede pra quebrar um galho. Assunto de confiança. - Sei como é que é. - Ontem mesmo, eu tive de fazer um serviço em dois carinhas. Botei minha roupa de linho branco e fui lá. Entro à direita na Buenos Aires, né, doutor? - Por favor, entra sim. Pode parar ali naquela vaga em frente ao edifício-garagem. O taxímetro marcava R$ 25,00. Dei R$ 30,00 e disse para ele guardar o troco. Disse também que tinha sido um prazer revê-lo com saúde. Mandei um abração para os cunhados dele. - Eu falo com eles sim, doutor. E o senhor fique aqui com esse telefone. Qualquer coisa, é só ligar que eu sirvo o senhor, numa boa. Eu tô velho, mas o homem lá diz que só confia em mim. Diz que eu sumo e apareço que nem sombra. Ele até me chama de Sombra, não é mais de Baianinho. - E o homem tá certo... Qualquer coisa, eu ligo. Um grande abraço, então... companheiro. - Valeu, doutor. Agora, eu vou falar com a patroa e pedir pra ela caprichar na goma. Linho bonito mesmo, só branco e bem engomado. Nota do Editor: Ruy Paneiro é jornalista, trabalhou no Jornal do Brasil. Atualmente, trabalha como freelancer e colabora com jornais eletrônicos, como o Montblaat.
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