Ele é um comum mortal. Trabalha com carteira assinada numa pequena metalúrgica em São Paulo, possui CIC, RG, recebe restituição de Imposto de Renda, e vive com mulher e dois filhos num imenso conjunto habitacional. Tudo isso, religiosamente, entre 7 da manhã e 5 da tarde, de segunda a sexta-feira. Fora desse horário, ao transpor a soleira, ocorre a transmutação. Maria andava preocupada com as atitudes do marido João. De uns tempos para cá, tornou-se agressivo, a ponto de surrar a ela e as crianças sem motivo. João, desempregado, perdeu o eixo e passou a usar certas substâncias. Do uso para o tráfico foi um pulo. E tome pancada. A quem reclamar? À polícia não adiantava; ao padre, nem pensar porque evangélica; ao pastor, jamais. Uma amiga apresenta a solução: "Vai falar com o Meu Filho. Ele resolve qualquer parada". Meu Filho não é exatamente o fruto do amor dela com... (quem mesmo?), mas o apelido do citado metalúrgico, que a todos - homem, mulher, criança - trata carinhosamente por "meu filho". Possui uma vasta rede de informantes em todos os muquifos da cidade. Qualquer um que seja apresentado por um vizinho ou amigo é recebido, tem a sua reclamação ouvida e, dependendo da situação, ele resolve à sua moda. Maria foi ao Meu Filho. Contou, envergonhada, suas desgraças e recebeu uma complacente promessa de solução. Dias depois, batem à porta de Maria. João atende e ouve o seguinte recado: "O Meu Filho quer falar com você, agora. E leve Dona Maria". O "agora" foi enfático. João conhecia a fama e jamais imaginara que um dia viesse a ser chamado. O diálogo, segundo Maria, teve o seguinte teor, com um João branco e trêmulo: "Seu João, parece que o senhor está com sérios problemas pessoais e os descarrega no lombo da sua mulher e de seus filhos. Isso não é bom e não é coisa de homem de respeito. Ouvi dizer, também, que o senhor anda vendendo e usando coisas que eu, pessoalmente desaprovo. Dou-lhe uma semana para o senhor arrumar um emprego, parar de bater na sua família e acabar com esse comércio. Estamos entendidos?" A única providência tomada foi deixar de espancar a família e no sexto dia um outro emissário se apresentou no ponto comercial e o avisou do fim do prazo. "Se não..." No final do sétimo dia João foi levado às pressas para o Pronto-Socorro. Em pouco dias, recuperado, arrumou emprego de frentista num posto de gasolina e, assim que recebeu a carteira assinada, levou-a ao Meu Filho. "Nada como ser um homem de bem, não é mesmo, Seu João?" Um outro João foi ao DP do bairro e fez uma reclamação ao investigador-chefe, com uma lista de nomes na mão. Pediu providências urgentes para o que ele considerava um abuso o que acontecia no condomínio. E apontava Meu Filho como o manda-chuva, o cabeça da área. Alguém ouviu a reclamação e correu contar a um dos amigos de Meu Filho. No início da noite, quatro rapazes levaram o outro João à presença de Meu Filho. "Seu João, eu e meus amigos somos pessoas de bem, trabalhadores. Só queremos viver em paz no nosso condomínio. Como é que o senhor teve coragem de nos chamar de marginais, bandidos e assassinos? Isso não é bom. Isso não se faz." "E daí, vai me matar porque eu fui denunciar você e seu bando à polícia?" "Vou!" O velório foi concorrido. De um lado, a família do outro João chorava em volta do caixão; do outro, Meu Filho, compungido balançava a cabeça. "Uma pena, Dona Maria. Era um homem de bem, não é mesmo?" Nota do Editor: José Guido Fré é jornalista.
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