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Contos
10/09/2006 - 06h35
Nada é peixe
Laís de Castro
 

Sentei na frente dele e ouvi a ordem para abrir bem os olhos e olhar para a frente. Fiz isso a vida inteira, abrir bem os olhos e olhar para a frente e parece que não adiantou nada. Nada é peixe. Muitas vezes tive que virar de lado, olhar ao redor, para cima ou para baixo. Mas sempre voltava a olhar para a frente, como se seguisse um objetivo inodoro, insosso e incolor. Como água. Um objetivo transparente, que não se deixava ver ou pegar, nem sentir, nem atingir. Inatingível. Talvez tivesse sido você esse objetivo intangível, talvez tivesse sido eu mesma. Talvez eu me buscasse naquele fitar eterno para a frente. Ou não era nada disso. Nada é peixe.

Vi uma luz infinitamente azul, antes que o médico mandasse fechar o olho direito e abrir o esquerdo, bruscamente. Ele não tinha tempo a perder a sala de espera, lá fora, lotada de gente. Tem duas senhoras lá que parecem irmãs, tão iguais são uma e a outra. Gêmeas, não. Irmãs. E eu imagino que conheço aquelas duas de algum lugar. Já estivemos juntas numa festa, ou será que elas são aquelas nossas parentas distantes, Candelária e Idália? Elas usavam aqueles óculos pesadões mesmo e tinham cara de fuinha, como estas. Fuinha? Ou mico leão dourado? O mico leão dourado é tão feio, deviam deixar desaparecer, que falta faz? Sei lá, não sei de nada. Nada é peixe.

Por favor, senhora, olhe de novo para a frente. De novo a luz azul, parecia um céu com aquele sol de fim de tarde de inverno querendo se mostrar ou se despedir antes de ir brilhar sobre o Japão. Pode levantar e sentar-se naquela cadeira ali. Dá para ler aquelas letras? Não? E agora? Vamos tentar um pouco maiores. Agora com o outro olho. Está bom, assim, P, Q, R, S, T, li, bem mandada. Estas aqui são Y, Z, U, V. Está bom, está bom. Eu sempre soube ler, desde que me entendo por gente. Nunca fui burra, analfabeta, como a minha irmã, que só aprendeu a soletrar no segundo ano do grupo escolar. Eu, não. Da primeira vez que me mandaram ler, saí lendo. Todos se assustaram, porque tinha me alfabetizado sozinha, vendo os outros lendo, digamos, assim, por observação e repetição. Não é nada difícil. Nada é peixe. Fácil.

Todo mundo na vida trabalha por observação e repetição. Como você acende um fósforo? Como veste uma roupa? Como enxuga o corpo após o chuveiro? Nada de novo no front da Dinamarca. De novo? Não é novo. É apenas a repetição do que se ouviu falar a vida inteira. Jâ-nio-Qua-dros-foi-e-leí (assim, com a sílaba tônica no í) -to-pre-si-den-te. Pronto, me mandaram ler a manchete do jornal com quatro anos de idade e eu li. Todos quase desmaiaram, que pena que eu não tenha ninguém hoje para desmaiar quando leio com perfeição as letras do oculista. Todos já desmaiaram para sempre. Estão mortos. Alguns ainda estão vivos, mas se foram. Foram e nunca mais voltaram. Mas vão pagar caro por isso. Estão cortados do testamento. Total. Corte integral. Estão cortados como se fossem um apêndice, que se joga no lixo. Reciclado. Adoro reciclar lixo, acho civilizado. Quando eu voltar para casa, vou ter que contar para o zelador: meus olhos vão bem, obrigada. Ele vai dizer, ahm, ahm, e virar pro Jornal Nacional. Ele escuta tudo, mas não entende nada. Nada é peixe.

Agora a senhora senta lá fora para dilatar a pupila. Mas eu tenho medo, estou de carro, posso voltar dirigindo minha Mercedes com a pupila estragada, funcionando pior que a dona do carro? Não quero bater a Mercedes. Ela é novinha em folha. Verde folha. De árvore forte, verde escura, linda, quase preta. Preto Cadillac, como eu gostava de Cadillac preto. Tive três. Senta ali, por favor, levanta a cabeça. Plim, plim. Olhos fechados, por favor, durante um minuto. E se a pupila não voltar ao normal, como é que eu faço? O minuto passou, pode abrir os olhos e esperar, obrigada.

Vamos medir a pressão do globo ocular, quem mandou a senhora pertencer a uma família de glaucomatosos? E tem que fazer exame de fundo de olho e tem que observar se a catarata não vem vindo por aí e tem que mudar os óculos, porque estes já não valem mais, a idade faz aumentar a miopia, o astigmatismo e o caruncho. Estou cheia. Que porcaria mais atrapalhada. Mil horas só para vir ao oculista, mais mil horas no ginecologista e ainda dizem que a gente deve enfrentar o geriatra? Nada. Nada é peixe. Não vou, não vou e não vou. Ninguém me manda.

Fiquei ali sentada como boba, os olhos misturando tudo, fingindo que lia aquelas revistas velhas e mil vezes lidas por outros olhos nublados. O dólar subiu, o dólar caiu, a atriz está grávida, o casal do ano está separado há um ano e meio. O que será que pensou destas porcarias de notícias quem as leu antes de mim? Bobagem, fico aqui sentada pensando bobagens. Saindo daqui vou lá e faço ele engolir aquela carta malcriada. Ou faço ele me devolver o dinheiro que emprestei há dez anos. Ou mato ele. Ou mando um bandido espancar e bater a cabeça até grudar pedaços de miolo na parede, tingir de sangue o tapete.

A senhora pode entrar. Sente-se ali, por favor. Agora eles vão me torturar, penso. A moça toda bonitinha, com roupinha da moda, sem uniforminho de médica, vem com uma lupa amarela. Mas antes acende uma luz diante dos meus pobres olhos indefesos, que faz doer, por dentro, até a parede dos fundos da cabeça. Aquela luz entra como uma lâmina, um facho que vai cortando tudo, como um laser. Vejo tudo branco, brilhante, parece que morri e fui pro céu. Oi mãe, oi pai, tudo bem com vocês? Que tal a gente jogar buraco? Agora lá na terra dos vivos só se joga tranca, ficou na moda, as pessoas precisam pensar menos, sabe como é. Não tem parceiro? Cadê tio Edgar, ele gostava tanto de jogar... Viajou? Mas aqui no céu também dá para viajar? Sei, pai, sei pai. Ele não perdeu aquela mania de pescar, sei. Ele também, quando morreu, não sabia jogar mais nada. Nada é peixe.

A moça tosse para me acordar, põe a lupa amarela em frente dos meus olhos. Agora tudo parece ter hepatite, a luz continua brilhando intensamente, mas ganhou uma tonalidade dourada. Tudo se repete do outro lado. Estou exausta. Detestei essa história de desvirginar minha pupila e deixá-la sem capacidade de voltar ao normal. Nunca? Nunca tinha feito essa porcaria. Pior até que fazer exame ginecológico. Bom, não é. É sim. Não, não é. Acho que é, não sei de nada. Nada é peixe.

Bem agora, depois de viver tantas décadas e não estar mais com pretensão e nem com humor para estréias físicas, tive que fazer isto. Pode se sentar lá fora. Obrigada. Não tem um café, um copo de água, nada, neste lugar. Esquisito, um médico tão chique, mas ele tem mania de simplicidade. Não, ele é simples. É, do verbo ser. Não dos verbos estar, permanecer, ficar. Do verbo ser. De verdade. Um homem íntegro, bom e simples. Ficou assim famoso porque é competente. Só confio nele e ele que tem que me dizer se estou legal. Não é verdade que a gente confia numa pessoa para uma coisa, em outra para outra coisa? Eu não ando com qualquer um dirigindo, por exemplo. Nem quero que ninguém me ajude a atravessar a rua. De repente é um assaltante... Você precisa de uma empregada, confia em agência para arrumar? Nada. Não confio em nada. Nada é peixe.

Não confio.

Fico perguntando para os amigos, amigas, que amigas, que amigos, que eu não tenho? Vou dizer conhecidos, fica melhor. Fico pedindo para todos me arrumarem uma empregada. Já faz dois anos que preciso e ninguém me indica. Será que é porque eu quero que ela durma na casa do zelador? É que eu tenho medo que ela me assassine à noite. E o zelador tem um quarto tão bom. A senhora pode entrar, por favor. De novo, para a sala de tortura? Não. Agora vou falar com o meu ídolo. Ele é lindo, inteligente, maravilhoso, sabe tudo o Doutor-Sabe-Tudo é ele. A senhora está ótima, seus olhos não passam nem perto de um glaucoma, nem perto de uma catarata, só os óculos mudaram um pouquinho. Parabéns. Até logo, senhora. Até logo senhor e muito agradecida pela atenção que o senhor teve comigo. Agora a senhora se senta ali e fica uma meia hora, para a pupila voltar um pouco ao normal, está um sol forte lá fora, é perigoso dirigir assim. Por favor, senhora, sente-se ali.

Vou sentar mesmo, porque quando olho para o lado de fora da janela vejo um borrão branco, mesmo se eu puser óculos escuros não fica bom. Mesmo se fixar um ponto e fizer esforço, não vejo bem. Daqui a pouco eu levanto e vou embora, senão todo mundo vai ficar preocupado, já faz umas três horas que eu estou aqui no médico oftalmologista. Todo mundo quem, cara pálida? Pálida é a vó. Só se for o zelador, porque ele sabe que eu nunca volto para casa depois que o sol se põe. Mas por enquanto não estou vendo mesmo nada.

Nada é peixe.

Vou ter que esperar.


Nota do Editor: Laís de Castro é jornalista, 36 anos, está há 18 no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda, 8 na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e, agora, é da Dieta Já. É autora do livro "Um velho almirante e outros contos", pela Editora Siciliano.

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