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Contos
23/07/2006 - 08h29
Com essas e outras, a vida passa
Adriana Carvalho
 

Findo o almoço ordinário de domingo, contemplando a desordem dos pratos sujos na mesa. No dia 2 de janeiro, início de fato de cada ano novo e também após deitar flores aos mortos no Finados. Se houvera uma hecatombe nuclear e fora ele um sobrevivente. A conclusão do avô para todo e qualquer episódio era a mesma:

- Com essas e outras, a vida passa. Um dia, um sábado, ao meio-dia, ela passou de vez.

A avó estende e mostra as mãos, a aliança de casamento ainda está no dedo.

– Fiquei viúva.

Olha para as unhas compridas e sem esmalte. Quem iria pensar em unhas em últimas semanas como essas?

– Vou fazer as unhas, não é porque fiquei viúva que não vou mais fazer as unhas.

É engraçado. Ele contava sempre as mesmas histórias. E agora não me lembro de nenhuma inteira. Sei que tinha uma da japonesa que apareceu no sítio e queria casar com ele, mas ele não quis porque japonês só come arroz. E outra da mula que quando percebia que estava no caminho de volta para casa, ninguém conseguia segurar. E outra ainda de dois inimigos que fizeram as pazes quando cruzaram caminho sobre uma ponte de madeira e um avisou ao outro que o cadarço do sapato estava desamarrado.

Ele era mais ou menos cinco centímetros mais inteligente do que qualquer um de nós. Quando se irritava com alguma coisa que a gente fazia ou era contrariado dizia isso, que era mais inteligente.

– Um tanto assim – dizia dando a medida com os dedos acima da cabeça. Os dedos dele eram bem maiores que os meus, mas acho que dava isso mesmo. Uns cinco centímetros.

Mas ele era de fato muito inteligente. Sem brincadeira e sem centímetros. De uma inteligência particular de inventar e consertar coisas. E de aprender sem professor. Foi assim que aprendeu a dirigir. Assim também juntou uma lupa, umas pinças e uma estrutura de metal para construir um segurador de óculos. Assim podia enxergar melhor onde colocar o parafusinho quando a haste caía.

Os armários foram esvaziados. As muitas caixas de velas de muitas cores foram doadas para a Igreja e para uma loja de umbanda, mas a presença do avô está decantada na casa. Como olhar o relógio de pêndulo quebrado, no alto da parede da cozinha, sem ver o avô encarapitado no alto da escada insistindo em dar corda? Como abrir a enorme e prateada maçaneta e girar a chave grande na fechadura da porta tão antiga quanto ele? E a cadeira na cabeceira, de costas para a janela, de frente para todas as portas, uma almofada sobre ela? Procuro uma foto bonita para o porta-retratos que vai ficar na sala junto com os que já passaram. Mas ainda é cedo. E dolorido. E desisto.

Ele fazia escambos com o além. Já me contaram, mas isso eu também esqueci: como é que um filho de imigrantes italianos e católicos e com olhos nem bem verdes nem bem azuis, foi parar no candomblé? Ou na umbanda. Perdoem, eu nunca lembro a diferença. Um dia eu chego em casa e encontro o avô no jardim da frente junto com meu marido, derramando pinga no chão. Nem perguntei o que era. Entrei e esperei.

– Ele disse que o Tranca-Rua está aí na frente e me pediu para ir junto dar pinga pra ele – disse meu marido ao entrar.

Contou que o avô falava com tanta gravidade que ele nem argumentou muito. Nem mesmo quando além de tudo lhe foi pedido para atravessar a rua e perguntar para o invisível Tranca-Rua se ele havia recebido a pinga. Ele foi onde o avô mandou e sabe... que las brujas hay... aquele ditado... e falou para o nada, meio baixo para ninguém ouvir:

– O senhor recebeu a pinga, seu Tranca-Rua? Respirou aliviado quando ninguém respondeu...

Em cima da porta sempre tinhas "uma proteção". E no banheiro muitas velas sempre acesas e um copo d’água para o anjo da guarda. No peito uma estrela com muitas pontas e pedras vermelhas e uma fita velha e encardida. No porta-retrato da sala, um desenho de um garotinho que ele chamava de Pedrinho.

Não houve muito prazer nem diversão para o avô. Não por falta de oportunidade. Por estilo de vida mesmo. A tia lembra que há muitos anos, nas férias na praia, insistiram para que ele fosse ao bilhar, porque souberam que um dia ele desejara aprender a jogar. Ele acabou cedendo e foi. Conta a tia que por alguns contados minutos o olhar do avô se iluminou e viu-se ali uma fresta de divertimento. Passou logo.

De tempos em tempos lá vinha ele perguntar:

– Tem uma blusinha velha para eu levar lá?

Lá era onde uma mulher falava umas coisas e cantava outras e com aquele teatro ancestral retirava da costura das blusas e de dentro dos travesseiros um montinho de fitas coloridas emaranhadas que resumiam o mal que alguém sempre queria nos fazer.

Eu só de birra cortava todas as costuras das mangas, barra e colarinho. Não sobrava nenhum cantinho para esconder fitinha. Então, para mim, nunca tinha ninguém querendo mal.

E os meus sonhos: naquelas últimas semanas, na verdade nos últimos dias, quando ele já era só pele e osso, pois se recusava a comer, eu sonhei que ele voltava para casa e eu perguntava:

– Vô, você voltou? Você melhorou?

E ele estava forte, até bronzeado e parecia contente. Nessa mesma noite meu marido havia passado a noite com ele no hospital. E diz que quando ele acordou contou que tinha tido um sonho e agora entendia porque estava passando por tudo aquilo e falou que estava contente. Isso foi um dia antes do sábado.

Um dia ele ficou sabendo que eu ia para uma entrevista de emprego. Para tudo dar certo, me aconselhou a, diante do entrevistador, bater três vezes o pé no chão, chamando:

– Maria Feiticeira! Maria Feiticeira! Maria Feiticeira!

Descartei a feiticeira. Também não consegui o emprego.

O tio morou com o avô só até os dezoito anos. Depois foi para o exército, para a aeronáutica, morou no Norte. Agora é frei e mora no Sul. Especializou-se em informática. Mas diz que não gosta. Preferia ter sido químico, mas não foi porque o avô achou que não valia a pena gastar dinheiro com isso.

Ele era só pele e osso, como doía de ver aquilo! Não que faltasse comida. Faltava era vontade e gosto de comer. O que no passado era só piada para entre a família, no final perdeu a graça. Todos nós sabíamos que ele tinha suas manias. Não comia carne de frango se estivesse "cruzada", seja lá o que isso significasse. Coca-cola, nem todas as "partidas" estavam boas. E fazia misturas malucas: comia bolo com azeitona. Não experimentava nada que não conhecesse, desculpando-se e dizendo:

- Ainda não cheguei lá.

Seu fosse pintar meu avô como se pinta natureza morta, não pintaria uma cesta de vime com maçãs e peras e uvas. A natureza morta de meu avô era um chapeuzinho de papel feito de jornal, calças manchadas de tinta, uma espátula feia. Natureza de consertador de casas velhas.

Do que ele gostava? De sorvete Cornetto, de ficar sentado de olhos fechados ouvindo Julio Iglesias bem alto ou a trilha daquele filme velho, "Muito além do passado", rapadura, pipoca e miojo.

E os sonhos: uma noite foi só um sonho de relance, vi meu avô cair nos últimos degraus da escada. Pela manhã, meu filho de dois anos e meio acordou e me disse:

- O biso caiu.

Uma queda aconteceu de fato, na noite seguinte. Mas a avó e o irmão estavam ali para segurá-lo. Isso foi sete dias antes do sábado.

Ele gostava também de ver documentários sobre dinossauros. Ele dizia "dinozauros". E também histórias de alienígenas. Um dia minha amiga sentou-se ao lado dele no sofá e ouviu uma meia hora de conversa sobre a "alta ciência de Nossa Senhora Aparecida". Uma ciência que ele mesmo criou.

Eu era pequena, um pouco mais velha que meu menino. Lembro da bisavó, a mãe do
avô, sentada naquela mesma cadeira, na mesma cozinha. Sempre de lenço na cabeça e cobertor sobre os gambitos finos. Lembro que fazia malcriação e mostrava a língua porque ela falava umas coisas em italiano que eu não entendia. Lembro do avô chamando-a para sentar na sala para ver os palhaços na televisão. Lembro que contavam que ela era enjoada igual para comer, gostava de arroz "morreninho", que era arroz com tempero queimado. E que tinha umas feridas na perna e que não queria que colocassem remédio e que um dia meu avô inventou um remédio para pôr lá e que não se sabe como, as feridas fecharam. E ele contava com entonação bíblica que a bisavó havia dito a ele:

- Fonso! Você me curou!

Lembro de chegar correndo perto do pequeno quarto ao lado da cozinha e da minha mãe sussurrando:

- Fica quietinha agora que a bisa morreu.

Meu menino não é como eu. Não mostrava a língua para o biso. Comia rapadura com ele e queria pipoca para o café da manhã, como ele. Queria sempre ajudar e dava a mão para conduzir o velho ao banheiro. E sentava na cadeira e imitava o jeito dele dormir de boca aberta. Pela manhã, pegava todos os bules da casa e levava para o bisavô tomar café imaginário. E lhe dava também muitas balinhas de mentirinha.

Ele dizia que às vezes seu coração disparava como uma borboleta desesperada para passar através do vidro da janela.

Foi assim esperado e de repente que um dia, era um sábado, uma hora ele estava respirando e na outra, não estava mais. Como no parquinho que eu lembro de ir quando era bem pequena. Como o carrossel, que era uma delícia e eu sabia que uma hora ia acabar.

Mas quando acabava, era a surpresa mais triste do mundo.


Nota do Editor: Adriana Carvalho é jornalista formada em 1992 pela Faculdade Casper Líbero. Já trabalhou nas redações da Agência Estado, Valor Econômico, iG e da revista Veja. Atualmente, trabalha como freelancer.

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