Aos poucos, Febrônio descobriu que não existiam mais velhos no país. Os que deviam ser anciãos estavam fantasiados de papagaio e dançavam a rumba em eventos de Terceira Idade. Ninguém mais usava, como ele, chapéu de feltro, ou manta para este inverno que não se instala de forma definitiva, deixando claros de veranicos a assanhar a passarinhada da praça. Havia um surto coletivo no ar. Ele sentia a vibração mesmo antes de sair, quando olhava os sapatos pretos lustrados, a calça de lã com bainha italiana, o casaco xadrez e a camisa de flanela abotoada até o pescoço. Sentia desconforto. Não dispunha de amigos para repartir as horas. E não tinha vontade de participar da arenga sobre os benefícios da qualidade de vida. Nem ficava de olho nos privilégios das pessoas que, como ele, tinham cruzado o cabo da Boa Esperança. O mais chato era que não podia conversar sobre a morte. Talvez o fato de estar cercado pela guerra civil fosse um empecilho. Refletia sobre esse paradoxo ao não compartilhar com o entusiasmo das rodas que se formavam para comentar as últimas atrocidades. Também não engrossava o tumulto dos que acorriam para a frente do quartel da polícia, atraídos pelo som das sirenes e aos gritos de "pegaram o tarado", ou o louco, ou o bandido. Não era esse tipo de impacto que precisava desfrutar num convívio de pessoas com idade próxima do primeiro século de vida. Ele sentia falta do segredo que existia anos antes, e que costumava cercar as mortes com algum mistério. Não considerava essa falta que sentia como um desvio de conduta. Achava normal fazer a morte sentar-se ao seu lado para uma conversa. Ela sabia contar histórias. O fato é que o excesso da morte tinha inviabilizado o suspense. Os corpos se amontoavam sem que houvesse tempo para o debate, o sussurro, o conluio entre teses, posições. Não se podia contrapor, raciocinar, investigar, procurar informações. Tudo se atropelava num clima de Juízo Final sem julgamento. Não havia tempo, nem disposição, para entender direito o que tinha acontecido. Hoje tudo parecia claro demais. O padrasto que matou mulher e enteados, a avó que enfrentou o neto drogado, todos se envolviam em coisas óbvias. Os assassinos confessavam, se entregavam ou apareciam na televisão para logo depois serem capturados. Não havia uma chave falsa, uma pista, um frasco de perfume, partido, embaixo da cama. Tudo era decifrado pelo DNA e o que ainda permanecia oculto obedecia aos velhos ditames da política e da corrupção. Os habitantes do país se atiravam à carnificina no trânsito ou nas festas de fim de semana como se quisessem fugir definitivamente, furar a fronteira, aportar em outros territórios, que estivessem livres do astral que tomou conta de apartamentos, botecos, cinemas. Febrônio tinha perdido para sempre a nação que o criara, e passeava pelas ruas tendo de aturar os berros dos camelôs. Os bancos da praça continuavam lá, mas era temerário se aboletar em qualquer um deles. A mendicância e a loucura faziam ponto nos últimos espaços públicos e, derrotado, ele voltava para casa a pé, já que cansara de aturar desaforo de motoristas revoltados com sua condição de velho não pagador de passagem. Chegava em casa e abria a veneziana. Morava no mesmo lugar a maior parte da vida. Lá, no pequeno quintal, protegido por alto muro que mandara construir, sentava no seu banco favorito e aguardava os pássaros migratórios que teriam de passar muito acima dos fios. No rádio já não tocavam mais música e o que havia era um discurso interminável, de religiosos, políticos, artistas, anúncios. Harmonia, melodia, letra tinham sido erradicadas, pois eram recursos que não compactuavam com o ambiente de desordem. Gostava de estar com a cabeça desocupada, para pensar nos crimes famosos, nos detetives idôneos, nas mulheres fatais que conseguiam sair ilesas, e nos velhinhos criminosos que acabavam caindo na própria armadilha. Talvez fosse isso! Os velhos continuavam suspeitos, mas agora se faziam de vítimas para driblar as investigações. E quem disse que ainda existiam investigadores? Esses tinham se desviado de fato de suas condutas, acomodados graças à proliferação dos denunciantes. Não gostava de certas palavras como alcagüete, próstata, tripartite. Quando as ouvia, ou algo parecido, sabia que morava no pesadelo da linguagem. Fora escrivão a vida toda e as palavras eram precisas, sintonizadas com os depoentes, que eram articulados, alfabetizados em sua maioria ou pelo menos tinham o primário bem feito. Agora não entendia nada, a começar pelos nomes. Joilton, Jordinelson, Aricleide? Onde estavam as Aracis, os Gessys, as Brígidas, as Titas e até mesmo os Febrônios? Tinham sumido pelas mãos de cartórios desonestos. Esses, aceitavam tudo porque neles trabalhavam os retardados que na época de Febrônio eram os últimos da classe. No fundo, os sujeitos reprovados tinham tomado conta da nação. Destruíram as escolas, esconderam os melhores livros, erradicaram os nomes bíblicos para que o país sumisse junto com sua população, agora batizada com nomes híbridos, massacrada e de coração seco. Tinham até acabado com os velhos, que hoje viviam a brincar de roda, fantasiados de periquita ou fazendo propaganda de estimulantes de riscos cardiovasculares. Febrônio mantinha-se bem vestido dentro de casa e aguardava a chaleira chiar para fazer seu café. Depois, sentava no banco favorito a esperar as aves. O barulhão dos motores na avenida próxima, os gritos dos adolescentes armados, a serra elétrica em alguma construção próxima, tudo o rodeava nesse final de tarde, quando suspirava por uma boa conversa. Sim, ele estava velho. Sim, queria conversar sobre a morte. Não, não queria se iludir com a melhor idade. Febrônio era um caso sem cura, mas seu desencanto era fruto do que o mantinha intacto: uma vida plena, vivida no passo miúdo do país que um dia fora soberano e que agora se esvaía junto com as nuvens coloridas. No lugar do arco-íris, uma grande lua suspeita mostrava o brilho da sua coroa. A noite se aproximava para que ele voltasse a sonhar. Nota do Editor: Nei Duclós e autor de três livros de poesia: "Outubro" (1975), "No meio da rua" (1979) e "No mar, Veremos" (2001); e de um romance: "Universo Baldio" (2004). Jornalista desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.
|