Ela não era bonita. Tinha o aspecto quadrado, retaco, mas não aparentava nenhuma brutalidade. A pele era morena, clara, com alguns respingos de luz no ombro exposto por vestido decotado e discreto. Havia tristeza na boca vermelha de batom, suavizada pelo contraponto de um olhar ovalado, quase enorme, e decidido. Írio estava na parada do ônibus e achou que a mulher queria falar alguma coisa. Para isso ela tinha se colocado em posição de sentido, com os braços juntos ao corpo, a mão esquerda segurando a bolsa de napa marrom, semi-nova, e a direita espalmada na coxa. O vestido rosa desmaiado, com listas brancas, tinha marcas de um forro discreto, presente na altura do busto e na cintura. Ela deu um passo para frente e abordou Írio, que já estava há uns vinte minutos esperando a condução para levá-lo a uma unidade do Juizado dos Menores. Era seu dia de plantão. Não costumava chamar a atenção de ninguém, pois tinha o um tipo comum daquelas bandas: alto, curvado, magro, com um loiro de trigo bem clarinho no cabelo cortado, sempre despenteado. Exibia um topete que era mais efeito do vento do que do espelho. Estranhou, por ser invisível, a aproximação da mulher, que o cumprimentou com cerimônia e batendo duro com o salto alto do sapato preto. - O senhor é o Írio, que trabalha com os menores, não é? Írio concordou, estranhando a pergunta. Todos o conheciam naquele ermo, cidade perdida, a poucos quilômetros da capital do estado, mas a mil anos de luz de qualquer civilização. A mulher levantou os olhos, colocou a mão no rosto e exclamou: - João Pedro está muito feliz. Espichou a última sílaba no feliiiiz. - O senhor lembra do meu filho, o João Pedro? (as sobrancelhas finas ficaram espessas com o olhar pesado). O menino que queriam matar, lembra? Íris olhou para os lados. Não havia mais ninguém na parada. Claro que lembrava. Seu gesto foi no impulso. Oito anos antes, tinha visto a mesma mulher, que era outra no aspecto e na fúria: estava sendo espancada por seis policiais. Mordia, gritava, chutava, rolava no chão. - É uma empregada doméstica. Disse que perdeu o filho, disse Tramóia, o policial gigantesco que estava sempre na recepção. - E acharam? perguntou Írio, levando um coice do policial. - Esse está no papo, ô distraído. Já levaram o guri para o campo. Írio tinha a cara de sonso. Aprendera a fazer aquele desenho no rosto de tanto presenciar barbaridades. Sabia de vários casos de assassinatos a sangue frio, de preso queimado, de enterrados vivos, de carcereiros estaqueados ao sol de meio dia no pátio conflagrado. Mas insistiu: - Qual campo? O agente Masmorra passava por ali e carregou Írio pelo braço. - Tu vem comigo, ô taquara, espanador da lua. Não sei o que tu faz com esse tamanho. Vara-pau, vou te mostrar uma coisa. Írio ainda ouvia o uivo da mulher, que exigia a devolução do filho roubado, quando se afastava na camioneta aos pedaços de Masmorra. O descampado exibia uma grama uniforme e alguns tufos de árvores ao longe. Uma dessas aglomerações era um grupo de policiais, espancando um garoto de doze anos. Negro. Estava roxo na metade do rosto. O resto era sangue endurecido. Apanhava há horas, talvez dias. - Por que estão batendo? - Para dar o exemplo, disse Masmorra. Foi flagrado puxando fumo e ainda debochou dos policiais. - Fumo de quem? - Fumo limpo, nosso, é que não era. Tinha comprado de um delinqüente que veio de longe cheio de pasto. A gente conseguiu limpar o malandro, mas ele já tinha repassado para uns manés da vila Guilherme. Esse guri... (e Masmorra sacudia o dedo indicador como a decretar alguma lei eterna) esse guri tem que pagar o desaforo de comprar de gente desconhecida da cidade. E ainda por cima (uma cuspida para fora do carro, que foi longe), ainda por cima debochou, entende? Írio não disse nada. Desceu do calhambeque e foi se aproximando da surra. Os outros policiais ficaram com a mão no ar, olhando o magricela que chegava com o rosto contraído. - O que tu quer aqui, Írio? Vai cuidar dos teus advogados, dos teus superiores, dos guris que te chupam o pau, vai. Írio parou e disse na boa: - Vão matar o guri. Se matarem o guri, aproveitem o embalo e me matem também. Porque essa eu vou denunciar. Gargalhada geral. Írio era conhecido como o mandalhete dos policiais, trazia refresco, café, pão de queijo. - Volta para o carro e te fecha, abostado. Irio continuou de pé, na parada de ônibus. A cena toda lhe vinha na cabeça, agora mais nítida. Procurara esquecer o acontecido, porque ficara marcado e precisou se recolher. Depois de peitar os matadores, virou um vegetal de verdade na repartição. Ninguém lhe dirigia a palavra. Mas também, parece mentira, o temiam. Porque Írio não arredou pé até que o ultimo bofetão deixasse o menino semi morto no chão batido agora pela chuva. Estavam fartos e deram por encerrado o expediente. Possivelmente tinham escutado a ameaça. Era mais difícil se livrar de Írio do que de um garoto negro da favela. Antes de o último homem sair de cena, Írio agarrou-o pelo braço: - Vê se devolve o documento do garoto. O policial suspirou. Mas achou que não adiantava peitar o funcionário, iria dar problema. Talvez fosse o novo queridinho do diretor, nunca se sabe. Pegou a carteira de identidade do bolso externo do casaco e jogou no chão. - Pega se tu é homem. E tirou o revólver. Írio olhou-o bem na fuça, se abaixou e pegou. Sacudiu o documento no rosto do outro e disse: - Agora vão embora, devagar. - Veja a foto que ele enviou, disse a mulher. Era um homem de vinte anos, com o rosto pintado, sorrindo ao lado de uma turma de estudantes. - Passou no vestibular, dizia a mulher espichando a última silaba... aaaaar. Na Federal... aaaal. E implodia num riso inexistente. - Vai ser veterinário. Quer estudar os animais, animaaaais. Írio só soube dizer: - Fico feliz por ele... e pela senhora. O ônibus já vinha vindo e Írio decretou o fim da conversa. Quando estava subindo, a mulher, que se preparava para ir embora (ela não estava esperando condução nenhuma) quase gritou: - O senhor salvou nossa vida. Salvou a vidaaaa, ecoava em Írio a confissão dita de maneira desesperada e ao mesmo tempo suave. Ele foi para o fundo do carro e ainda viu a mulher se afastando, com seu passo miúdo. Não era alta. Tinha o cabelo bem penteado, com uma fita vermelha, pequena, na parte de trás. Olhava para chão quando caminhava. Írio voltou-se para a frente e todas as pessoas que ai estavam – aposentados, office-boys, garotas do comércio indo para casa - o olhavam longamente, com o olhar sonâmbulo do povo desgarrado. Olhavam para ele de maneira insistente, até que um senhor muito idoso, de cara murcha, parecendo uma passa de uva, veio se equilibrando no carro em disparada. O velho se segurou o quanto pôde, libertou a mão direita e pegou da mão de Írio. Depois se abaixou como podia e beijou a mão daquele homem que salvara vidas. Foi tudo num instante. O velho desceu e Írio ainda via a cara do motorista no espelho, olhando para ele com os olhos cheios de água. Todos os gestos o embalavam e ele vestia uma túnica que seu gesto tecera ao longo de oito anos, e que lhe cabia como um pássaro na tardinha, um navio em dia de bonança, um avião em céu de brigadeiro. Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: “Outubro” (1975), “No meio da rua” (1979) e “No mar, Veremos” (2001); e de um romance: “Universo Baldio” (2004). Jornalista desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.
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