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Contos
11/06/2006 - 07h13
Zero absoluto
Daniel Santos
 

"Dirceu está melhor, aos poucos vai se recuperando", diz a esposa do paciente por telefone aos vários amigos que pedem notícias dele. Embora essas palavras de alguém intimamente ligada ao velho amigo acalmem os ânimos, todos sabem, embora neguem isso, que ele está por pouco e, se não se finou já, deve tudo aos médicos. Porque lhe tiraram muitos segmentos: intestinos, fígado, baço e mesmo o delicadíssimo pâncreas... De tudo, os clínicos extraíram material para análise. E o resultado... Bom não foi, porque o enfermo submete-se a intensivo tratamento há quase cinco meses. Cinco meses sem se levantar da cama e, incrivelmente, sem perder o sorriso de sempre.

"Vai ver, não está tão mal assim" - seus amigos comentam no saguão do hospital, quando se encontram em dias de visita. Evitam, dessa forma, encarar a realidade mais amarga: em breve, vão perder aquele que nunca se notabilizou em seu círculo, mas soube ser agradável, jovial, bem-humorado, capaz de tirar piadas do momento mais grave. E, mais uma vez, comporta-se dessa mesma maneira. Em vez de admitir a proximidade da ruína, liga a tevê e muito se diverte com programas de auditório, plenamente satisfeito. Ri e volta a cabeça aos visitantes na esperança de que também eles riam. É sua maneira de pedir cumplicidade aos demais, de desencorajar perguntas indiscretas, e no entanto todos querem saber qual a doença que o subtrai progressivamente, sem qualquer possibilidade de negociação. Querem saber, mas ninguém se atreve a perguntar. Bastava uma pergunta simples, como "qual o resultado dos exames?" ou "é mesmo verdade que você tem câncer?" Em vez disso, retraem-se à espera de que ele tome tal iniciativa.

Há, no fundo, no fundo, uma esperança inconfessa e generalizada de que ele nada tenha realmente, de que breve voltará ao convívio dos seus, mas basta examinar, ainda que superficialmente, sua fisionomia para deduzir o contrário: Dirceu sairá do hospital para o caixão. Será seu derradeiro traslado, e no entanto muitos perguntam se não se poderia evitar toda essa lástima. Sim, porque não é de hoje que ele manifesta sintomas estranhos, senão preocupantes. E, ainda assim, fez-se vista grossa - ninguém (nem ele próprio!), reagiu a tempo. Porque, talvez, fosse melhor ou menos pior ir levando, tocando a vidinha com pachorra burocrática ante um mal que se adivinhava medonho, formidável, de todo impossível de combater. Porque, talvez, fosse melhor desconversar frente ao que se impunha como inamovível.

Fato é que nada obstaram. Enquanto possível fazer de conta, todos perseveravam nessa espécie de cegueira voluntária capaz de adiar, ilusoriamente, um desfecho previsível. Mas agora... Agora, é ver, admitir e aceitar. A falência do amigo estende-se aos demais, todos sentem no íntimo um fracasso que os desmoraliza gradativamente e contra o que nada podem. Deixam-se arrastar, portanto. E quando o enfermo baixar sepultura, cada um dos amigos estará igualmente arruinado; pelo menos, de certa forma, porque uma evidência se impõe desde já: a ruína resulta da incapacidade de reagir às primeiras infiltrações.

A primeira delas foi uma tosse renitente que o acometia sem mais nem menos, de dia ou à noite, nas circunstâncias mais diversas, mas isso durou cerca de duas semanas apenas. Depois, aquelas coceiras. Esse sintoma prolongou-se por mais de um mês, quando a esposa insistiu na consulta com um dermatologista, mas ele e os amigos deram de ombros. Vai passar - apostavam sem qualquer conhecimento de causa, mais para se tranqüilizarem. Quando manchas azuladas começaram a pintar-lhe as canelas e Dirceu não tirava as calças compridas para nada, houve certa tensão. A mulher exasperou-se e ele, talvez por intuir o inevitável, retraiu-se como um menino que não abre a porta, por adivinhar um fantasma atrás dela.

Seus amigos insistiam em que ele não deveria se preocupar demais com as manchas, porque resultavam, na certa, do futebol de fim-de-semana ou de esbarrões na mobília da própria casa. Quanto a isso, recriminavam a esposa de Dirceu que, logo após o casamento, deu de adquirir peças em excesso e, além do mais, no antigo estilo, grandes demais, cujo único mérito era atravancar tudo. Segundo um dos amigos de juventude, ela pretendia exatamente isso: quanto mais ocupava e ordenava o espaço, mais restringia os movimentos do marido como uma fiscal, uma catequista.

Ele tinha de andar pelas trilhas que a esposa determinava e, sem se dar conta disso, deixou-se disciplinar. Aliás, mesmo que tivesse consciência de tal subordinação, não reagiria, porque... ora, porque talvez fosse mais cômodo assim. Mas, apesar da maledicência de quantos criticaram inicialmente o casamento, os médicos e a própria esposa sabiam a verdadeira causa do mal de Dirceu: mais que a doença, a incapacidade de reagir o abatia. Ou, ainda antes disso, a teimosia em negar que algo ia errado dentro do seu organismo. Porque ele não falhava, não podia falhar. Nunca se preparara para os piores momentos, ignorava autocrítica e nunca ouvira falar em destino; para ele, um conceito meramente esotérico.

E assim, à custa de muita ingenuidade, conseguiu preservar seu sorriso juvenil através da vida toda. Tornou-se um homem agradável, um amigo suave, de cotidiano fácil, e que nunca criava problemas. Esse tipo, exatamente, que todos gostam de ter sempre por perto. Ter por perto e nunca perder. Por isso, o seu definhamento constrangia a quantos o conheciam. Ele iria embora e, consigo, levaria uma parte de cada um daqueles tantos que contribuíram para o seu processo de autodestrutiva ilusão. Isso mesmo. Estavam todos envolvidos. Quisessem ou não, a responsabilidade generalizara-se.

Aliás, até hoje, todos lembram em detalhes como tudo começou. A negação da doença coincidiu com a retomada dos exercícios físicos, da ginástica, das provas de resistência na companhia de amigos que o avanço da idade começava a dispersar. Pois juntaram-se outra vez. Foi um período de grande alegria, de festinhas, de reuniões e churrascadas aos domingos. E Dirceu sempre de calça. Com os meses, passou a vestir também camisas de mangas compridas, que as manchas se alastraram pelos braços.

Mas o novo sintoma logo refluiu e devolveu ao enfermo a aparência de saúde plena. Todos tranqüilizaram-se, então, porque acreditavam confirmada a grande esperança: tratava-se de mal passageiro. Confirmava-se igualmente o método de superação do mal: em situação de grande risco, o melhor, o mais indicado, a postura mais sábia é abstrair-se e deixar que tudo se resolva por si. Também Dirceu se esforçava para acreditar nisso, mas ele, e só ele, apesar das evidências em contrário, amargava em silêncio a contagem regressiva que, mais dia, menos dia, o reduziria ao zero absoluto. E, isso, em definitivo, sem apelações. Porque é da matemática progredir sem tolerar obstáculos, até desvendar a incógnita, com o bestial impulso que move as grandes revelações. A matemática é impiedosa.

A partir de determinado momento, o paciente tinha clara essa noção de ruína e, quando pretendeu entregar os pontos, admitir a própria fragilidade e correr para o médico (há, afinal, um médico sempre à espera de cada um de nós), compreendeu que tal seria de todo impossível, a não ser que os demais, aqueles amigos que apostavam na sua saúde, anuíssem. Mas eles não lhe dariam nunca a aprovação - isso estava claro. Se haviam decidido em conjunto ignorar o avanço do mal, mais uma vez unidos manteriam aquela negativa: tudo corria bem. Como sempre.

Nestas últimas semanas, Dirceu vive a sua pior fase num estado de solidão que não se deve desejar ao maior dos facínoras. De um lado, admite sem subterfúgios que está mesmo nas últimas. De outro, diante dos amigos, representa o teatro da saúde plena. Não poderá fraquejar, e assim até o derradeiro suspiro; do contrário, amargará o abandono de todos. Este martírio lhe renderá heroísmo. Sua imagem sobreviverá ao tempo como uma lenda que os demais alimentarão com sua necessidade de mentira. Será sempre lembrado nas churrascadas como "o velho e bom Dirceu", "o amigão de todas as horas", "aquele que nunca fraquejou" etc.

Vão estender essa ilusão até o último instante, o que, para eles, ainda vai demorar muito. E, para se certificarem de que o paciente resiste bravamente, telefonam à sua esposa todo dia. Ela diz que está tudo bem, que o marido reage como um touro, com uma energia que nem os médicos conseguem explicar. À força de muita repetição, também ela começa a acreditar que a realidade não é tão adversa assim e seu olhar comunica essa quase certeza ao enfermo, que, por sua vez, tenta se convencer do mesmo. E, se está tudo bem, Dirceu suspira de alívio, enrosca-se nos lençóis como uma múmia que desce já a antiqüíssimas tumbas e ressona na santa paz. Apesar de tudo, há um sorriso em seus lábios. E por que não, se o irreversível cerco vence agora por todos os lados?


Nota do Editor: Daniel Santos é jornalista carioca, 54 anos, trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional, uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

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