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Contos
21/05/2006 - 07h20
Morte e vida na BR
Newton Mizuho Miura
 

- Qui é que é hoje? - perguntou Belmiro, vendo o Quinco do outro lado da estrada empurrando a bicicleta, equilibrando um saco cheio no guidão e na barra.

- Maçãs! - respondeu Quinco, sem parar.

- Têm muito? - voltou a perguntar.

- Vai rápido que ainda dá pra pegar. Ainda tem bastante, mas tem muita gente - voltou a falar o amigo, ainda sem parar.

"Maçãs", pensou Belmiro, sem muito entusiasmo. "Vou passar na casa da comadre pra pegar um saco de ração vazio", pensou. "Pelo menos as crianças vão gostar. Só mesmo assim pra elas comerem maçãs. Quando tem muito assim, ninguém quer comprar. A gente leva lá no sacolão, querem pagar uma mixaria, quase nada. Nem vale a pena. Melhor deixar para as crianças".

Bom é quando tem carga de valor. Como foi daquela vez em que tombou o caminhão com aparelhos de som, gravadores, walkman, rádios, foi uma festa. Quem pegou conseguiu vender tudo.

E quando foi a carga de tênis, tudo de marca? Devia ser tudo muamba vinda do Paraguai. Mas era coisa boa, todo mundo queria comprar. Os filhos de gente rica queriam ficar com tudo. Eles não são burros, viram que está mais barato que nas lojas de São Paulo. Foi bom demais. Com o dinheiro que a gente conseguiu deu pra comprar carne no açougue, arroz, feijão e tudo que a gente precisava. Ainda sobrou pra comprar umas roupas pra mulher.

Belmiro seguia em frente, ainda distante da curva onde costumam acontecer os acidentes com os caminhões. A duplicação da pista ia diminuir os acidentes, mas até o governo terminar as obras ainda ia demorar. Já duplicaram uma parte, mas chegando ali a pista voltava a ter mão única. Então, os motoristas que vinham em alta velocidade pela pista nova, duplicada, continuavam a pisar fundo no acelerador e parece que os acidentes até aumentaram. Os buracos na pista antiga eram traiçoeiros e não tinha acostamento nesse trecho da estrada. Quem bobeasse tombava mesmo.

Belmiro não gostava dessa vida, não. Queria ter um emprego fixo para não ter de ir catar a carga dos caminhões acidentados. Não se sentia bem, mas o que fazer? Os R$ 10,00 que ganhava por dia, quando chamavam-no para trabalhar no sítio não davam pra nada. Queria que os meninos estudassem, mas fazer o quê? Dizia sempre pra eles não irem pra estrada, mas não adiantava. A professora deles, a dona Elenice, dizia que quando tombava um caminhão o zum-zum-zum na escola era tão grande, todo mundo ficava sabendo e ninguém conseguia segurar a criançada.

Na hora do recreio todas escapuliam. A escola ficava vazia. Só ficavam algumas meninas, as que vinham de famílias mais ricas que não precisavam apanhar as cargas dos caminhões que tombavam. Quando tombou aquela carga de aparelhos de som, os meninos apanharam vários gravadores, walkman, rádios, e venderam até para as professoras. Tinha um professor japonês que comprou quase tudo que os alunos levaram.

"Bem que a polícia tentou recuperar, mas ninguém é bobo. Se eles pensam que a gente vai entregar pra eles, ó, pra eles. A gente entrega e fica tudo pra eles. ’Magine’ se eles vão devolver a carga para os donos. Ainda bem que os meninos venderam logo os aparelhos. A única coisa que sobrou, que era um rádio-gravador, a gente escondeu no quintal, e depois vendeu, para comprar remédios para a Lu, a Luciana, a filha mais nova".

A menina tinha quase três anos e ainda não falava quase nada. Os médicos do posto diziam que ela estava atrasada no crescimento, que, logo, logo, a Lu iria estar falando. Receitaram algumas vitaminas para crescimento, cálcio e mais algumas coisas. Mas, qual o quê. A Lu não falava é nada, parecia uma criancinha de colo, andava com as perninhas bambas e gaguejava algumas palavrinhas que só a gente entendia. Ela só sarou quando o compadre Jonas chegou em casa, dia desses, para cumprimentar a gente no ano novo. Foi justo num dia de chuva. Aí, ele falou: "Tome, seu Antônio, (engraçado, ele sempre me chamava de sêo Antônio) é a água de janeiro. É a água de chuva da primeira chuva que chove no ano. Dê para a menina. É bom para as crianças pequenas que estão aprendendo a falar, elas passam a falar bem. Nos adultos não tem efeito mas é bom tomar também, faz bem".

Dito e feito, do jeitinho que o seu Jonas falou. A Lu, não demorou, começou a falar feito tagarela, papagueando sem parar. Que remédio, que nada, o que sarou a menina foi mesmo a água de janeiro, que faz destravar a língua de qualquer criança que não aprende a falar. Nem precisou dar a cabeça da maritaca como o seu Jonas recomendou: "Você conhece a maritaca? É aquele passarinho que parece papagaio. O miolo da maritaca faz a criança falar".

Só que a Lu, ao mesmo tempo que danou a falar, começou a comer feito um bicho. Parecia que estava se despedindo da vida. Era cada pratada que nunca vi, e queria repetir sempre. Tinha um apetite de nunca acabar. Foi quando teve a carga de tênis, que ajudou a comprar bastante comida. Belmiro estava lá. Os meninos também. Quando viram o pai ficaram meio assustados, mas logo estavam todos, pai e filhos, apanhando tênis e guardando tudo num saco. Venderam tudo na mesma semana. Uma professora ficou com três pares. Foi uma alegria. Os meninos disseram que a escola parecia um mercado, todo mundo vendendo e comprando tênis. Até os meninos acabaram ficando com um par pra eles.

Daquele dia em diante, a proibição para não irem para a estrada não valeu mais. Quando tombava um caminhão lá estavam eles, bem antes do pai. Às vezes o pai, quando estava trabalhando no sítio, nem ficava sabendo, e quando chegava em casa, os meninos vinham contar orgulhosos o que tinham apanhado, perguntando quanto é que valiam os produtos apanhados, conscientes de que estavam contribuindo para o sustento da família.

Mas já faz tempo que não aparece uma carga boa. Um dia foi de miojo, aquele macarrão que já vem quase pronto, coisa de japonês, que é só cozinhar e acrescentar o temperinho que vem separado num envelopinho de alumínio. A família se enjoou de comer macarrão instantâneo, toda a vizinhança só comia macarrão instantâneo. Belmiro mandou as crianças levar para o tio no sítio, que eles nunca tinham experimentado esse tipo de macarrão, não tinham a menor idéia de como prepará-lo. Como não sabiam ler tentaram preparar com molho de carne, sem saber o que fazer com envelope aluminizado. Comiam o macarrão com molho e as crianças lambiam o tempero com o dedo.

Outro dia foi uma carga de papel. Eram pacotes e pacotes de papel sulfite que caíram na beira da estrada. O caminhão de um lado, os pacotes do outro. Os meninos, com o pai, apanharam bem uns quarenta pacotes. Tentaram vender mas as papelarias da cidade queriam pagar muito pouco e no fim nem queriam mais comprar. Trocaram um pouco com cadernos que os meninos estavam precisando, tentaram vender na própria estrada acenando para os motoristas de automóveis que vinham do litoral, mas não adiantou. Acabou mesmo sendo usado pelas crianças para rabiscar, e no final acabou estragando tudo, com a umidade e o pó que vinham da estrada.

Puxa, como foi bom aquela vez em que tombou o caminhão de chocolates. Aquela vez, sim, foi bom. Não foi na curva da cidade, como sempre, mas lá embaixo, pra lá da Piúva, perto do morro do Serrote, bem antes da entrada da cidade. Belmiro estava voltando, por volta do meio-dia, do sítio onde foi ver se o patrão pagava o dinheiro da semana. Era um sábado, não era dia de trabalho. Belmiro viu a agitação na beira da estrada, os carros parando, os guardas, as luzes dos carros da polícia piscando. Belmiro sempre sentia um leve tremor quando via as luzes dos carros de polícia piscando, tinha um mau pressentimento.

Apressou o passo e viu o caminhão tombado no barranco ao lado da estrada, o povo no acostamento olhando o trabalho da polícia. Tinha o perito da polícia, o Guto, Belmiro conhecia de nome de tanto vê-lo quando aconteciam os acidentes em que alguém morria. Com certeza, o motorista deve ter morrido para justificar o nome de "Rodovia da Morte", que estigmatizava aquela estrada de tantas e tristes histórias de acidentes, que ceifavam a vida de famílias inteiras, algumas de conhecidos muito próximos.

O perito andava de um lado para outro, suando, com a camisa empapada de suor, o rosto vermelho ardendo ao sol daquele verão poeirento. Estava nervoso, olhando debaixo do caminhão, passando por cima do corpo do motorista morto coberto de jornais. Dava pra ver a carga do caminhão espalhada no chão, por sobre a vegetação rasteira que dominava aquele pedaço de terra úmida, perto do córrego que corria ao longo da estrada. Os sapatos do Guto estavam enlameados, a calça toda suja.

De repente ele explodiu:

- Que é que vocês estão olhando? - gritou.

O povo, instintivamente, recuou comprimindo-se no acostamento, afastando-se da beira do barranco.

- Vocês querem apanhar a carga, querem? Vão se danar vocês todos...

Disse um palavrão e continuou a andar, olhando por entre os arbustos, afastando os galhos. Já desanimado, propôs, conciliador:

- Olhem, se vocês me ajudarem a encontrar a cabeça do motorista eu libero a carga para vocês apanharem.

Guto estava procurando a cabeça do motorista decepada no acidente e que rolara para alguma parte daquele brejo. Só queria ir embora. Acidentes como aquele já não sensibilizavam aquele homem embrutecido ao longo dos anos, ao longo daquela estrada onde a morte motivava muitas vidas. A tragédia de uma mulher e de seus filhos sorridentes no painel do caminhão, ao lado de uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida, nada representava, a não ser uma história escrita em poucas e frias linhas num laudo técnico, que vai engordar o boletim de ocorrência policial.

Um menino apontou para uns arbustos próximo à beira do barranco. Todos olharam para o ponto onde o menino apontava. Guto foi lá e encontrou a cabeça do motorista, olhou o menino, o menino sustentou aquele olhar, Guto ia falar alguma coisa mas preferiu se calar.

Valendo-se de uns sacos plásticos pretos como luvas, apanhou a cabeça do motorista, colocando-a junto ao corpo. Foi até o córrego e lavou-se como pôde. Junto com os demais policiais, olhou o caminhão destroçado, apanhou algumas caixas de chocolate e foi embora. Os policiais fizeram o mesmo. Guto nada falou, apenas deu de ombros num gesto que parecia dizer: "Façam o que quiserem".

Foi a deixa, como que um tiro de largada nos cem metros rasos da olimpíada. Saíram todos ao mesmo tempo, descendo o barranco, deslizando sobre a grama escorregadia, e avançando por sobre a carga espalhada no chão e dentro do caminhão, apanhando tudo que as mãos conseguiam segurar. Belmiro conseguiu encher o saco que tinha trazido pensando em apanhar mandioca num sítio onde um parente trabalhava como caseiro. Precisava levar alguma coisa para o jantar. Eram várias caixas de chocolate, abriu uma e comeu um chocolate. Como era gostoso, já não se lembrava mais do gosto de chocolate que só experimentara quando criança. Doce pra ele só rapadura, ou bolo bravo de mandioca que a mulher fazia.

Chegar em casa foi uma festa. Quando depositou aquele tesouro no chão de terra batida da cozinha e abriu uma caixa, viu brilharem os olhos das crianças.

Ninguém jantou naquela noite, foi só chocolate. Durante dias, as crianças se fartaram de chocolate. Um pouco Belmiro vendeu na loja de doces do João Carlos, outro tanto trocou no sacolão por farinha, arroz e feijão. E ainda sobrou bastante para as crianças, que passaram até mal, enjoando-se de tanto comer chocolates. Belmiro via barras de chocolate pela metade, que um dos meninos começava a comer e largava.

- Não estraguem o chocolate, barriga cheia não é fartura - ralhava Belmiro, lembrando o que dizia sua avó, consciente de que logo mais os chocolates iriam acabar, e voltar os mesmos tempos de necessidades em que a família sempre viveu.


Nota do Editor: Newton Mizuho Miura é jornalista, desde 1969, tendo começado a carreira no então "Diário Popular", hoje "Diário de S.Paulo", como repórter de Geral, o que nunca deixou de ser. Trabalha hoje na Assessoria de Imprensa da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.

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