Fui procurar emprego em São Paulo. Por meio de um amigo comum, me dirigi à periferia da megalópole, num conjunto de prédios sem janelas aparentes e com tetos corcundas de cor vermelho viva. Na minúscula portaria, uma das poucas entradas que vislumbrei no edifício principal, me identifiquei e pedi para chegar ao departamento de comunicação. A pessoa que ia me contratar, ou me testar, pediu para não dizer o nome dela, só o local onde eu deveria me dirigir. O guarda me encaminhou para a recepcionista, que aos bocejos preencheu uma ficha e me ordenou pegar o elevador secundário, o que ficava na dobra do cotovelo do corredor. O ambiente era escuro e tive de tatear até o botão luminoso, que acionou o mecanismo para abrir a porta. Subi até o lugar onde deveria começar imediatamente a trabalhar, segundo me disse o sujeito pelo telefone. O elevador abriu para um seriado de portas com pequenas placas onde se lia indecifráveis enigmas. Eram letras e números separados por hífens que talvez indicassem a especialidade do que se fazia atrás de cada uma das placas. Onde se lia XPTO-3, entrei. Era a comunicação, segundo tinham me informado. Lá dentro, na penumbra, estava o cara sentado atrás de uma mesa, meio que debruçado sobre ela, com as mãos enlaçadas nos dedos, com os ombros para frente, um mais para frente do que o outro. Me olhava com seus olhos castanhos vivos e me falou para sentar. Combinamos rapidamente o trabalho e ele me pediu os documentos para registro. Estava satisfeito só com a indicação e o currículo. Achei fácil demais, mas me postei na saleta ao lado, que era tomada por enorme e tela de computador. Ali tomei conhecimento do projeto definido pelo chefe e passei a fazer o que me pedia. Era questão de arrumar os textos desconexos, meio técnicos, meio esdrúxulos, que ele me passara. As palavras se referiam a uma mudança em toda a organização e lá estava a palavra dos especialistas, da diretoria e, claro, do diretor de marketing, que deveria ser a fonte de tudo aquilo. Meu superior não era esse diretor, antes ocupava um cargo de responsável pelas informações corporativas, ou algo assim. Passei o dia na faina, sem parada para o almoço, pois o trabalho era urgente e precisava ser apresentado no dia seguinte. O que estranhei era a quantidade de informações que deveriam ser sigilosas, como demissão de pessoas importantes, reestruturação de departamentos inteiros, e até mesmo mudança do foco da empresa. Além de dados sobre faturamento, verbas que foram desviadas etc. Imaginei que aquilo jamais seria levado a público, mas fiquei impressionado com a tranqüilidade com que todas essas informações foram colocadas para mim, um completo desconhecido. Falei para o sujeito das minhas preocupações, num momento raro em que ele tinha parado de telefonar e estava olhando para o vazio. Não se assuste, disse ele, confio em você e vamos publicar, sim. Isso tudo vai para a imprensa e amanhã mesmo. Voltei para minha mesa ainda mais invocado. Onde estaria me metendo? Saí já tarde da noite e peguei um ônibus na estrada vazia que ficava ao lado da empresa. Custou a aparecer a condução e fui remoendo aquele dia absurdo pelo caminho. Teria que voltar cedo no dia seguinte. A remuneração estava acertada e só isso me deixava um pouco confortável com a situação. Mas essa sensação não durou no dia seguinte. Voltei preocupado, pois perdera tempo no trânsito e cheguei atrasado, lamentando minha falta de previsão, pois poderia ter saído mais cedo. Mas o cansaço me tomou conta e acordei num salto, com o sol já pleno de si na janela do quarto do hotel onde ficara hospedado. O que mais me angustiava era que precisa tirar um adiantamento para poder continuar no hotel, já que não dispunha de um local para ficar. Mas foi chegar na porta e vi que nada estava como antes. O guarda era diferente, a recepcionista era outra e comandava uma equipe que não vira no dia anterior. Repeti meu nome e ela me pediu os documentos. Mas eu já não estava no banco de dados? Ela estranhou minha observação e perguntou com quem iria falar. Disse o nome do departamento e ela não se satisfez. - Esse conjunto de salas está fechado, disse ela. - Como assim, ontem mesmo eu fui até lá. - Ontem? Mas ontem foi folga coletiva, não tinha ninguém. O que o senhor veio fazer aqui? - Vim para ser contratado para um trabalho no departamento de comunicação. - Esse departamento foi extinto. Aguarde um instante. Ela chamou o chefe da segurança, um sujeito quadrado, retaco, moreno, de olhos duros. - Com quem o senhor falou ontem? perguntou à queima roupa. Disse então o nome do chefe. Foi um assombro. O segurança e a recepcionista se entreolharam e o cara me pegou pelo braço e me levou para uma sala na mesma dobra daquele corredor. No lugar onde havia o elevador, tinha uma porta comum, que se abriu. Lá, um piso branco de mármore abrigava uma única cadeira vazia, com holofote em cima. - Agora repita o nome do cara e bem devagar, disse o guarda, já acompanhado por um grupo de asseclas. Repeti e foi pior. Levei um estrondo na cara, uma cotovelada poderosa, que fez meu nariz sangrar. - Você não pode ter falado com ele, seu merda. - Como não? cheguei a gritar, o que provocou uma saraivada de socos. - Vê se fica quieto, jornalista. O que você veio fazer aqui? Bisbilhotar? - Eu vim em busca de trabalho... - Quem te indicou? Não quis colocar em arapuca o amigo que me arranjara aquela treta. - Diz, seu bosta... Como já não falava mais nada, o cara suspirou fundo e acendeu um cigarro. Me fez sentar no chão enquanto ele usava a única cadeira. Me observava como se eu fosse um gafanhoto na hora da morte. - Pára de mentir, jornalista. O cara que você diz que falou ontem morreu a semana passada. Aliás, ontem foi folga na empresa porque todos foram convidados a assistir a missa de sétimo dia. Um gelo me desceu pela espinha. Estava branco, como aquela sala. - Vamos até o departamento onde você diz que ficou. E me levou aos trancos, pela escada acima, fazendo barulho. Depois de todos aqueles andares, eu sendo carregado pelos mastodontes, chegamos ao tal XPTO e lá entramos todos. A sala estava cheia de flores e a minha saleta, fechada. - O que você viu aqui, o que você fez aqui? Entreguei tudo, então. O jeito do cara, o trabalho que fiz, o que nele continha. Talvez a verdade me salvasse. O guarda abriu a porta da minha saleta num pontapé e me fez ligar o computador. - Mostre os arquivos. Rezei para que não estivesse lá, mas estavam todos. Fui abrindo um a um e imprimindo, a mando do carrasco. Foi passar os olhos pelo calhamaço para ele puxar o celular. - Temos algo aqui, venha depressa. Chegou um sujeito mais mal encarado do que ele. Era o Supremo Diretor. Tinha um cabelo curto, ruivo, uns olhos azuis, uns vincos no rosto de ex-combatente. Musculoso, gigantesco. Pegou os papéis e foi lendo. De vez em quando me olhava, furibundo. Estou enrascado, pensei. -Você passou esses papéis para alguém, seu desgraçado – me perguntou o supremo. - Não senhor. - Até que horas você ficou na empresa? - Até às onze da noite. - É proibido ficar até essa hora. E depois foi aonde? - Para meu hotel. - Não tem casa, puto? - Estou chegando na cidade, precisava de um emprego. Eles se afastaram. Confabularam um pouco e depois me disseram: - Pode ir embora. Vai. Dei um salto e me mandei. Voltei pelas escadas, limpando sangue. Saí pela porta onde tinha entrada e voei para a estrada. Quando o ônibus se afastava olhei para trás. Não havia condomínio de edifício nenhum. Apenas um imenso terreno baldio, onde algumas vacas pastavam. Comecei a falar sozinho. De repente, duas mulheres do povo, sentadas no banco da frente, depois de me olharem longamente, viraram uma para outra. - Coitado, disse uma, de lenço na cabeça. Deve ser os nervos. Quando cheguei no hotel, minha mala estava na portaria. O encarregado me repassou um envelope. - Sua conta já está paga. Pode ir. Abri ali mesmo, diante da ansiedade do porteiro, que parecia assustado. Era um maço de dólares e uma passagem de volta ao lugar de onde vim. Junto, os meus documentos pessoais que entregara para o falecido. Já ia saindo quando o porteiro fez um psst. Atendi, voltando a cabeça. - Eles disseram que sabem onde você mora e com quem. Boa viagem. Nota do Editor: Nei Duclós é autor de três livros de poesia: “Outubro” (1975), “No meio da rua” (1979) e “No mar, Veremos” (2001); e de um romance: “Universo Baldio” (2004). Jornalista desde 1970 e bacharel em História. Trabalha atualmente em Florianópolis, onde é editor-executivo de duas revistas.
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