· DIVAGAÇÕES
Homero Benedicto Ottoni Netto
hbon@uol.com.br
O ambiente era surrealista.
Estava na Palestina, em época indeterminada, cerca de dois mil anos atrás e, absurdamente, tinha um pequeno rádio nas mãos.
Dele saia a voz de alguém que era minha conhecida e o teor das palavras era ácido e tratava do comportamento subversivo de alguém que, na Galiléia, descalço e acompanhado de uma multidão de famintos e esfarrapados, pregava idéias corrosivas, que colocavam em risco a ordem teocrática local, milenarmente estabelecida e, principalmente, a segurança da própria "pax romanorum" que garantia a Ordem naquela região do mundo.
O louco centrava sua pregação numa absurda igualdade entre os homens e negava os princípios da dominação do homem pelo homem.
Parece que sua ação deletéria seria merecedora da pena de crucificação.
Repentinamente o ambiente mudou e eu estava em Paris, onde um panfleto de convocação geral consignava o dia 14 de julho de 1789.
O rádio e a voz ali permaneciam, agora verberando acerbamente a baderna e a desordem ali promovidas contra a Ordem legalmente constituída.
Multidões maltrapilhas e esfaimadas movimentavam-se em direção a Versalles e, lá chegando, dirigiram-se ao palácio, construído para que os reis pudessem, no estio, fugir do insuportável odor de esgoto aberto que emanava das ruas da capital de França.
Desprezando os caridosos conselhos da rainha que, ouvindo as queixas de falta de pão para o povo, sugeria que comessem brioches, invadiram os jardins da residência real e obrigaram o rei, numa ação inegável de lesa majestade, a acompanhá-las a Paris.
A Ordem estava prestes a ruir e o caos tomaria o seu ligar, permanecendo as autoridades inertes.
A desordem, comandada por alguns profissionais da agitação, com destaque para um tal de Jean Jaques Rousseau, cuja pregação absurda dizia que os homens nasciam iguais, crescia assustadoramente e o locutor fantástico reiterava suas constantes manifestações anteriores advertindo o governo da proximidade e da gravidade do perigo.
Eis que na praça fronteiriça ao Hotel de Ville, onde funcionava a administração da cidade de Paris, a multidão, que já invadira aquele prédio público, exibia algumas cabeças, espetadas na ponta de chuços de madeira.
Pensava-se que era o fim perseguido pelos baderneiros, quando grupos desses miseráveis dirigiram-se para o bastião representativo do Poder, a Bastilha, onde estavam encerrados os criminosos que tiveram a ousadia de contrariar as "razões de Estado".
O prédio foi invadido, seu responsável morto e os presos libertados.
Era o fim da Ordem estabelecida legitimamente e que garantia justos privilégios de casta, nascimento e função aos aristocratas e ao clero.
Ainda chocado com os fatos narrados e a veemência com que a voz os descrevia e criticava, tive a atenção chamada por comentários que a mesma voz passava a fazer sobre as conveniências da restauração do nosso "Grande Irmão", o SNI, que tão bons serviços prestara no passado à garantia da Ordem institucional no Brasil.
Percebi, então, que já acordara com o rádio/despertador, sempre ligado no Jornal Gente, da Bandeirantes e que era o nosso querido José Paulo de Andrade que invocava o concurso daquela instituição que, como olho e ouvido do Poder em nossas casas, seria solução para evitar a infiltração de agitadores profissionais no meio desses milhões de baderneiros "sem qualquer coisa" que pretendem inverter a Ordem, legítima e democraticamente instituída neste país, onde, um povo, cuja imensa maioria é composta por remediados, pobres e miseráveis, é tão bem representado por um Parlamento onde a imensa maioria de seus membros é integrada por ilustres latifundiários, banqueiros, empresários e outros representantes da elite racional.
Ainda sonolento, fui invadido por um irônico e angustiante desvario, que sugeria a idéia absurda de que a subversão e a desordem com que eu sonhara eram responsáveis pela realidade hoje vivida.
Perguntava-me se a vitória do obscurantismo absolutista sobre o iluminismo teria criado as condições culturais que permitiram a invenção do rádio?
E, em caso afirmativo, se os radialistas teriam liberdade para exercer a sagrada missão de informar com independência e de criticar sem qualquer constrangimento?
Será que sem aquelas "Desordens", haveria Progresso?
Sem resposta para tais indagações, deixei essas bobagens de lado e resolvi levantar.
Afinal temos a garantia da Ordem e Progresso, não precisando elucubrar sobre os devaneios de um eventual Progresso e Ordem.
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· O Conquistador de Iperoig
Fátima Aparecida Carlos de Souza
Dados da revista Arquivo Municipal - 1963
articulista@ubaweb.com
Pertencente a uma célebre família genovesa, cuja primeira participação política se dera em 1621, através das conquistas populares que fariam a derrocada do velho sistema feudal, José Adorno, ficou conhecido como "O Conquistador de Iperoig".
Fugindo da Europa, os irmãos José, Francisco, Antonio, Rafael e Paulo Adorno vieram para o Brasil em 1530, já reconhecidos como técnicos da cultura da cana e da indústria do açúcar. Inicialmente, um fato veio mostrar a preponderância de José Adorno sobre a ação do português Brás Cubas, que nos seus vinte anos tinha experiências limitadas. Enquanto Brás Cubas tentava se apossar da ilhota, chamada hoje Barnabé, José Adorno fundava com seus irmãos, com a participação de Pascoal Fernandes e Domingos Pires, o núcleo central da futura cidade de Santos, o "Engenho São João", em 1535.
Com o sucesso de José Adorno, Brás Cubas ficara sem recursos em 1536 e partira para Lisboa. José Adorno casara-se em terras santistas com a nobre Catarina Monteiro, filha de um fidalgo português com a Marquesa Ferreira. Financista, negociante, industrial, intelectual, filantropo e guerreiro, conhecia os clássicos e era muito versado na língua latina, razão pela qual se tornara companheiro predileto de Anchieta e Nóbrega.
Durante a Confederação dos Tamoios, foi amigo devotado dos padres da Companhia de Jesus e quem pôs à disposição de Nóbrega e Anchieta recursos de embarcação de alto mar para que fossem a Ubatuba parlamentar com os chefes Tupinambás e conseguir a paz definitiva com os portugueses, oferecendo-se, ele mesmo, para chefiar a pequena expedição marítima que depois de várias peripécias terminaria com o histórico Armistício de Iperoig.
Em 1566, Estácio de Sá se desesperava por não poder expulsar do Rio de Janeiro os franceses e seus aliados Tamoios. Nessa época, José Adorno, desanimado com a decadência do Engenho São João, aconselhado por Nóbrega, reuniu grande corpo de combatentes portugueses e brasileiros, 300 pessoas. Fornece-lhes bergantins, canoas de voga, peças de artilharia, mantimentos e tudo o quanto era necessário para uma longa expedição.
A 20 de Janeiro de 1567, eram dizimados definitivamente os Tamoios e, em seguida, corridos da Guanabara os últimos franceses para o assentamento dos colonos portugueses. Ganhou, como prêmio, uma das melhores sesmarias.
José Adorno morreu com mais de cem anos, pela altura de 1605. Segundo Frei Gaspar e Vasconcelos, pediu emprestado a certa confraria uma quantidade necessária de cera para seu funeral, com a obrigação de pagar o que gastasse. Pondo-a na balança, depois de concluído o enterro, acharam o mesmo peso que tinha antes, não obstante haver estado acesa muito tempo.
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