· Caiçara
Settembrini
articulista@ubaweb.com
A casa fica no alto de um pequeno morro, voltada para o leste. Lá embaixo, a praia do Prumirim. Da pequena varanda, avista-se a imensidão do Atlântico e, no verão, a brisa marinha brinca entre as folhas dos cajueiros, deixando, por onde passa, nas coisas e em nossos corpos, gotículas do oceano que carrega em seu dorso. Ao amanhecer, o sol envolve as ilhas dardejando seus raios, rutilando sobre a superfície, para o encantamento dos olhos e da alma. Da janela dos dois pequenos quartos, a paisagem da Serra do Mar com suas árvores imensas e os bandos de periquitos que voam de um lugar para o outro a procura de alimentos, em algaravia. À noite, o silêncio é cortado pelo barulho das ondas na areia da praia e das águas nas pedras da cachoeira. É uma das poucas propriedades caiçaras que ainda resistem à sanha da especulação imobiliária e à grilagem de terras que teve seu momento mais virulento na década de setenta. A terra foi herdada dos antepassados. É uma posse, como a maioria das terras caiçaras. Este é o habitat, esta é a casa do seo Zé Coutinho, um caiçara beirando os 70, que adora bater um papo, tomar um cervejinha, contar um causo, que morre de saudades dos tempos em que era pescador e que, impotente, não entende a modernidade e apenas assiste o fragmentar-se de um mundo que acreditara sólido e duradouro.
Não gosto e não concordo com o que mestre Aurélio, o do dicionário, diz a respeito do caiçara: "Verbete: caiçara S. m. Bras.9. Malandro, vagabundo (grifo meu).10. 11. Bras., RJ e SP. V. caipira..." De fato, o caiçara é um caipira criado à beira mar, no sertão, nas várzeas que se estendem até o sopé das montanhas da Serra do Mar. Mestiço de índio e português e também de um pouco de negro, o caiçara, pelo menos os que eu conheci, sempre lutaram duramente pela vida, quer em terra, quer no mar. Isolados pelo oceano e a Serra, abandonados por muito tempo entre as duas mais importantes cidades do Brasil - São Paulo e Rio de Janeiro - esta, por sua vez, capital do País, o caiçara só tinha contato com outras cidades pelo mar, em embarcações inseguras, muitas vezes rudimentares como a canoa de voga, ou por terra, subindo montanhas no lombo de cavalos. Um aspecto importante da cultura caiçara é o mutirão, principalmente nas atividades pesqueiras. Lembro-me das grandes redes de arrasto, puxadas nas praias por cordas de imbé (um cipó nativo) e dos cercos de tainha. Já a agricultura, sempre foi a de subsistência, com exceção da banana e da mandioca. Era comum ver as canoas de voga, vindas de praias distantes, enfrentando o mar, abarrotadas de cachos de banana e de sacos de algodão cheios de farinha de mandioca que eram trazidas para serem vendidos na cidade. Não era uma vida para malandro ou vagabundo, não senhor!
Das lembranças de minha gente, o que mais me marcou foi a hospitalidade, a altivez e a religiosidade. Era comum, nas salas das casas caiçaras, tanto nas mais humildes, de taipa ou de pau-a-pique, como nas mais sofisticadas, de tijolos, haver um oratório com os santos de devoção. O sincretismo religioso estava presente na maioria das festas e das danças. Dança de São Gonçalo, Chiba, Moçambique, Festa do Divino Espírito Santo, de Reis, de São Pedro, com sua procissão marítima e tantas outras que fizeram parte da nossa cultura. Por ocasião dessas festas, vinham os parentes, os compadres e as comadres residentes nas praias longínquas, e sempre se dava um jeito de hospedar a todos. Era assim na casa de minha avó, que foi madrinha de um bocado de caiçarinhas. Lembro-me dos fogões de lenha, do café socado no pilão de madeira, no fundo do quintal, das casas de farinha e das mulheres da casa com suas comadres forneando e proseando. Sinto até hoje o cheiro da sardinha seca assada na brasa, acompanhada de café, servido em canecas de ágata, com farinha de milho ou de mandioca. Tudo muito singelo, tudo muito limpo. Havia pobreza, nas nunca vi miséria, como vemos hoje em dia. Havia sempre, da terra ou do mar, o de comer, havia o teto onde morar, mesmo que coberto de sapé, que nunca faltou a ninguém. Aliás, não me lembro de um dia ter visto, em toda a minha vida de praiano, um caiçara pedir esmola.
O impacto das transformações a que o caiçara foi submetido nos últimos 30 anos, principalmente com a perda de suas terras, foi tão violento que o município, também em razão da intensa migração de pessoas do interior de outros Estados, se tornou um município como outro qualquer, sem um perfil que o distinga, a não ser por suas belezas naturais. Lembrei-me, agora, de Simone Weill: "O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana" "Mesmo sem conquista militar, o poder do dinheiro e a dominação econômica podem impor um influência estrangeira a ponto de provocar a doença do desenraizamento."
No dia em que fui apresentado ao seo Zé, era tempo de caju. Os cajueiros estavam exuberantes, mas o seo Zé estava angustiado, tenso com a iminência de perder, mais dia menos dia, definitivamente, suas terras. A informação que tive dele, recentemente, era a de que estava para ser despejado.
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· MEIO AMBIENTE, A VIA CRUCIS CAIÇARA
Aládio Teixeira Leite Filho
articulista@ubaweb.com
O projeto ambiental que foi implementado e atingiu várias cidades brasileiras, incluindo-se cidades do nosso Litoral Norte Paulista, elaborado por técnicos juntamente com seus colaboradores e que em princípio, segundo discurso dos mesmos, tinha como principal meta o tombamento da área da Serra do Mar, objetivando preservar a Mata Atlântica, contava também com a inclusão efetiva do caiçara no projeto, preocupando-se em resguardar sua história, seus costumes, festas religiosas, folclóricas e gastronômicas... pelo menos em termos literais é o que aparece colocado no projeto de tombamento em questão (na prática não funcionou), aspecto que asseguravam aos caiçaras, serem respeitados nos seus legítimos direitos de continuarem na terra e sobrevivendo da mesma, tocando a vida normalmente, como vinham fazendo a séculos.
Mas bastaram alguns meses de implementação do projeto, para que o caiçara percebesse que mais uma vez havia sido enganado pelos tecnocratas de plantão que estão sempre querendo inventar a roda, através de experiências desastrosas, que trazem em seu bojo mudanças que violentam os que estão sobre sua égide, e desta forma do dia para a noite o caiçara se viu sobre o regime de autoritarismo dos referidos tecnocratas que elaboraram o projeto de tombamento da Mata Atlântica e instalação do Projeto Núcleo Picinguaba, da Polícia Florestal e do Instituto Florestal, que quando à época de sua implantação, voltamos a enfatizar, proclamavam aos quatro ventos que procurariam ouvir antes de tomar qualquer decisão que se referisse ao parque, a população nativa, que desde tempos ancestrais vinham habitando aquelas terras.
No entanto o que pudemos verificar no decorrer da implantação do Núcleo Picinguaba, é que os tão propalados mentores democráticos do projeto Picinguaba, não passavam de lobos, disfarçados em pele de cordeiros, e passaram a oprimir a população caiçara, com Leis absurdas engendradas atrás de quatro paredes, que passaram a servir como instrumento para expulsar o caiçara de sua terra, uma vez que elas proibiam os caiçaras de pescar, plantar, tirar um pau para construir uma canoa, tirar o palmito...
Certa feita em Picinguaba, o pessoal do núcleo Picinguaba, tomou de forma brusca e intempestiva, da mão de duas crianças, o peixe que estas traziam certamente para o sustento da família e ainda os agrediram de forma cruel e covarde com o revólver; em outra oportunidade levaram preso um doente mental e o colocaram na cadeia pública, na companhia de marginais, tudo porque o deficiente mental havia cortado 5 palmitos.
Foram os fatos aqui relatados, apenas um pequeno extrato do que vem ocorrendo na Picinguaba, e em todos os locais que encontram-se sobre as ordens do Parque Ecológico Núcleo Picinguaba, que foi sem sombras de dúvidas concebido de cima para baixo, por ecologistas de gabinetes, sem em nenhum momento consultar os caiçaras que ali vivem, que a grosso modo foram ao longo desses anos de implantação do referido parque, tratados como incapacitados e incompetentes no sentido de colaborarem na concepção do mesmo.
O que aprendemos com nossos pais foi pescar e plantar algumas coisas, herdamos este modo de sobrevivência, que ora encontram-se totalmente impraticáveis, após entrar em vigor no dia 29 de março de 1998 a "Lei de Crimes Ambientais", a qual passa a tratar o pescador não mais como infrator, mas como um criminoso comum. Caro Deputado aqui em Ubatuba, não há incentivo aos meios de produção, não contamos com indústrias para proporcionar empregos à população, então ficamos a nos perguntar, como poderemos sobreviver daqui pra frente em nossa cidade, a qual não podemos cultivar a terra, pescar, tirar areia, ou extrair qualquer tipo de produto da natureza.
Nós pescadores gostaríamos de perguntar ao Excelentíssimo Deputado Ricardo Isar e demais autoridades competentes aqui presentes, qual fórmula será viabilizada concretamente para solucionar este nosso gravíssimo problema de falta de alternativa para nossa população manter seu legitimo meio de subsistência, uma vez que inclusive foram vocês mesmos quem criaram o problema e, agora esperamos que vocês apresentem uma boa solução para o mesmo.
Vocês atenderam o clamor ambientalista da Alemanha, Canadá, Japão, França, Inglaterra... no sentido de preservar entre aspas a Mata Atlântica, pegaram o dinheiro que estes países mandaram para o Brasil, e em nome dessas potências estrangeiras, estão sacrificando e condenando à miséria o caiçara, que secularmente aqui sempre viveu em feliz harmonia com o meio ambiente... se vocês não acabarem com esta opressão que está sendo imposta a nós caiçaras, certamente desapareceremos, mas lamento informar-lhes a Mata Atlântica, infelizmente também estará fadada da mesma forma como seus naturais guardiões, a desaparecerem, ou quando no máximo tornarem-se apenas, uma triste fotografia pregada em uma parede qualquer atestando o quanto era linda a nossa terra...
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