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Ano 1 - Nº 12 - Ubatuba, 13 de Setembro de 1998
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· A saga de Nini e Peti
    Herbert Marques
    hmarques@iconet.com.br

Nini e Peti eram dois crustáceos decápodes oriundos de uma das praias do Litoral Norte, fruto de cruzamento em um dia de mar agitado e nuvens sombrias de início de verão. Aliás, cruzamento meio complicado, já que o pai ficou um tempão pendurado em cima da mãe e depois, satisfeito de seus instintos menores, se despregou e se picou pelo mundaréu sem fim, dando lugar a outros que fizeram o mesmo. O que sei é que tanto o pai de um como o pai de outro, se é que tiveram pais diferentes, emprenharam de forma sem graça a mesma mãe que se arrastou por um bom tempo com uma barriga amarela e enorme, desovando tudo ao deus dará, oportunidade em que os nossos heróis tiveram a felicidade de serem fecundados e saírem por aí, a procura do que fazer.
Tanto Nini quanto Peti levaram uma juventude saudável e despreocupada, visto que a mãe natureza, que não era aquela que os gerou desprovida de qualquer sentimento de carinho maternal, mas esta, cheia de luz e calor, se demonstrou sempre disposta a surpreender com uma dádiva, seja ela em forma de alimento ou de outra coisa qualquer que viesse alegrar o espírito, principalmente nos dias de mar revolto e noites escuras.
Já na vida adulta, com corpo feito e apropriado às malhas das redes traiçoeiras, já que a espécie não foi privilegiada com o desejo da carne e da luxúria como nos outros, Nini e Peti foram rapidamente perdendo sua inocência para uma vigilância permanente e cheia de malícia, aquela que a vida logo de cara lhes ensinou ser a chave para conviver no mundo selvagem das profundezas, ou dos não menos traiçoeiros baixios, onde o fluxo e refluxo das mares dá uma tênue aparência de tranqüilidade.
Siri
Já prontos para a procriação, o corpo nitidamente preparado e adaptado para produzir seus gametos, partiram nossos siris para a vida que a natureza lhes dera em troca da obrigação natural de perpetuar sua espécie.
Nini de um lado, Poti de outro, cada qual na busca de seu destino, certamente nunca mais se encontraram, ou se o fizeram, suas características e peculiaridades não permitiam que se identificassem, até o dia em que, engolidos cada um de uma vez, encontraram-se alquebrados, já agonizando, na barriga de um enorme condrictes.
Mesmo assim não foi possível se identificarem como irmãos, restando para cada um, o derrame dos tais sucos gástricos que os reduziram a uma massa disforme, eliminada posteriormente sem a menor identificação.
Triste fim de um casal de irmãos que não foram privilegiados com o reconhecimento de sua mãe biológica e tão tristemente abandonados pela aparente dadivosa mãe natureza.
Que fique para nós todos, siris e humanos, o exemplo de Nini e Poti.  Quem  quiser sobreviver, não pode dar moleza pra tubarão.Fim do texto.
· Pescaria
    Eduardo Antonio de Souza Netto
    articulista@ubaweb.com

Robalo

Fui, num dia desses, pescar na costeira próxima ao cais da Ponta Grossa, na companhia de meu filho de dez anos. Do local onde ficamos, tem-se uma visão privilegiada da baía da cidade, com a Serra do Mar e o pico do Corcovado como pano de fundo. Manhã ensolarada de um inverno acanhado, maré de quarto crescente... Não pescamos nada. Perdi uma chumbada, enroscada nas pedras do fundo. Não nos incomodamos muito com a pescaria malograda, o que valeu foi que nos divertimos bastante lavando a minhoca, digo, o camarão. Na lua cheia prometi-lhe voltarmos. Contei-lhe, então, durante a pescaria, que no local em que estávamos, com a maré de lua cheia, já havia fisgado, nos tempos de adolescente, um robalo de uns seis quilos. Tive que jurar que era verdade, mesmo assim ele deu uma risadinha disfarçada e olhou-me de soslaio não me botando muita fé... Mas eu juro que é verdade!
Num certo momento, deixando a pescaria um pouco de lado, olhando para esta baía, para o mar, para a cidade lá longe, pequenininha, extasiado, inundaram-me sensações, sentimentos, que há muito não tinha, de orgulho de ter nascido nesta cidade, de estar ali com meu filho, de ter chegado à metade da vida em paz comigo mesmo, de estar aberto para entender o desconhecido que há de vir, de saber que meus antepassados fazem parte deste pedaço de universo, que integram esta natureza incrivelmente bela. Morrer naquele instante... Não lutaria... Entregar-me-ia mansamente. Seria este o tal de sentimento oceânico de que falara Romain Rolland em uma carta escrita para Freud? Em meio a esse arrebatamento, de repente, o aguilhão da realidade - os rumos que minha cidade vem tomando...
A minha cidade deixou de ser alegre. A minha cidade veio se entristecendo nos últimos vinte anos. Insegura, com uma cara desfigurada. Algumas pessoas dizem que ela deu as costas para o mar. Será que é pela absurda migração desses últimos vinte anos? Por causa de todos esses migrantes que vieram "ganhar a vida" à beira mar? Será que foi pelo quase completo aniquilamento dos caiçaras? Ou será que é pela crise econômica gerada pelo Plano Real? Quem sabe é por causa da mediocridade generalizada resultante da sociedade de consumo que fez das cidades nada mais do que um lugar para se ganhar dinheiro e da cultura e da natureza, bens de consumo? Não sei... A verdade é que a cidade foi transformada numa grande loja e nós somos seus empregados, prestadores de serviços, vendendo, direta e indiretamente, tudo o que temos para o chamado turismo de massa, para pessoas ansiosas apenas em "curtir" o mar, em divertir-se a preços módicos.
Já nas ruas, de volta para casa, pedalando nossas bicicletas, meu filho, entusiasmado, falando ainda da pescaria, e eu atento aos automóveis para não sermos atropelados, enquanto a cidade, com seus ruídos continuava e continua agonizando, lentamente, como um peixe arrancado fora d'água.Fim do texto.
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