Nossa Senhora Aparecida, que já foi representada como uma santa branca no início do século XX, sofreu um processo de enegrecimento. Necessidade de identificação dos devotos negros com um símbolo católico determinou processo A padroeira do Brasil, Nossa Senhora da Conceição Aparecida, nem sempre foi negra. Segundo o historiador Lourival dos Santos, a imagem da santa passou por um processo de africanização imposta por devotos brasileiros. "Eles tinham essa necessidade de uma maior identificação com um ícone religioso. Apesar de o padrão estético valorizado no Brasil ser o europeu (branco), Aparecida passou por um enegrecimento", afirma o pesquisador. Santos conta que houve uma negociação de padrões culturais. Ele relata que a Igreja Católica apenas permitiu, mas não participou desse processo de enegrecimento. A padroeira do Brasil já foi representada de formas diferentes das que conhecemos hoje. Santos encontrou, em estampas e santinhos do início do século passado, imagens de Aparecida branca. Para compreender como funcionou esse processo de assimilação da santa pela população e o seu enegrecimento, Santos realizou entrevistas com uma família de devotos negros. Além disso, ele analisou as canções brasileiras referentes à santa. Essas pesquisas foram a base da tese de doutorado de Santos, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Aparecida, que foi encontrada no rio, ficou escura pelo tempo que passou embaixo da água e pelo incenso das velas da capela onde foi colocada. "Tratava-se, na verdade de uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, tanto que, por um bom tempo, o dia da padroeira foi comemorado em 8 de dezembro", conta o pesquisador. Mas esse enegrecimento de Aparecida, nas representações e na população, não tem uma data exata. Devotos A partir das três gerações da família Jesus, devotos negros de Aparecida, Santos buscou ver como um grupo de negros católicos se relaciona e trabalha com as questões religiosas. Ele observou que na família, formada por migrantes de Minas Gerais e atuais moradores da periferia de São Paulo, os problemas são sempre mediados pela intervenção da santa. "A devoção é também uma forma dessa comunidade se integrar com outras", explica. Segundo o pesquisador, ao milagre ’racionalmente’ comprovado - porque sem explicação "científica" - da igreja se opõem esses milagres cotidianos e constantes a que os devotos se referem. "São as graças relacionadas à saúde, ao parto ou ao fim de um caso de alcoolismo na família que aproximam os devotos de Aparecida", diz. A mãe da primeira geração da família é analfabeta e seus filhos têm, em geral, escolaridade baixa. Somente seus netos chegam próximos ao ensino superior. A devoção à Aparecida é também uma forma de inclusão deles na comunidade nacional que, ao migrarem do campo para a cidade, precisam redefinir a própria identidade. O elemento religioso, já forte no interior, acaba sendo um ponto de sustentação das famílias pobres nas grandes cidades. Um dos membros da família é um padre ligado à teologia da libertação. "Por ter mais estudo, ele acaba sendo um mediador de classe social, entre sua família e outros níveis", explica Santos. Canções O pesquisador também analisou as canções que tratam de Nossa Senhora Aparecida e constatou é que, até 1981, as músicas não falam sobre a cor da santa. Seu enegrecimento - contrário ao comportamento dominante de embraquecimento, inclusive cultural - só se consolida após a atuação da teologia da libertação no País. E é na década de 1990 que haverá uma explosão de canções sobre a santa. "Foi uma tentativa dos católicos de fazerem frente ao avanço dos evangélicos e de sua música, que estavam começando a aumentar sua influência na cena religiosa", acredita Santos.
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