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COLUNISTA
Eduardo Souza
05/10/2005 - 09h12
Caiçaraneidade
 
 
Arquivo UbaWeb 

Certa feita, no início da década de setenta, num final de semana, fiz a primeira de algumas poucas, longas e cansativas viagens de quatro horas ao extremo norte do município. Não havia estrada naquele tempo. Fui por mar no pequeno barco da ASEL, uma instituição da igreja católica que tinha à frente o denodado Frei Pio Populin. Conheci então o Ubatumirim, o Camburi e a Picinguaba, e neste bairro me hospedei, numa casinha nos fundos da capela que servia de escola.

Além da beleza exuberante da paisagem da região, em convívio harmonioso com o homem nativo, impressionara-me as condições de vida dos meus conterrâneos. Não havia energia elétrica, as pessoas não dispunham do mínimo conforto que nós, caiçaras da cidade, desfrutávamos naquela época. As propriedades, como ocorria com a maioria das propriedades do município, eram posses, não tinham escritura, e primitivamente demarcadas: pelos rios, pelas vertentes de morros, por matacões, por árvores centenárias, e por outros acidentes geográficos. Não havia cercas distinguindo-as umas das outras. Havia entre as pessoas uma convivência comunitária por excelência. A maioria das casas era de pau-a-pique e cobertas com sapé. Alimentavam-se do que plantavam, do que caçavam e do que pescavam. Encontrei pessoas que sequer tinham registro de nascimento, certidão de nascimento. Não havia assistência médica. Horrorizou-me a feridagem nas pernas e braços da criançada, causada por picadas de borrachudos. As crianças que não tinham possibilidades de se transferir para a cidade, cursavam somente o primeiro grau na escolinha isolada, no meio da selva, cujas professoras eram verdadeiras heroínas. Resolvi naquela ocasião que tinha de fazer alguma coisa pela minha gente.

No início daquela saudosa década, estudávamos no colégio Capitão Deolindo, cujo prédio, recentemente construído, nossa turma havia inaugurado. A construção da BR-101 estava ainda em seu começo, e os conflitos dos caiçaras com os grileiros acirravam-se, desembocavam no Fórum e nos tabelionatos, que registravam o início e o fim de uma cultura. Diante desse cenário, pressenti que algo devia ser feito. Conversei com alguns colegas de classe e sugeri que formássemos grupos de estudantes para, nos finais de semana, viajar de barco até aqueles bairros. A idéia era a de, além da diversão do passeio, fazer com que a galera conhecesse melhor aquela realidade, e quem sabe pudéssemos criar algum tipo de movimento de assistência àqueles ubatubanos. Naquele tempo não havia as tais ongs. Quando fui expor a idéia ao diretor do colégio, recebi um sorridente e sussurrado não. Não seria bem visto pelos militares. Estávamos em pleno governo militar e, nessa época, havia em cada colégio estadual um dedo-duro oficial, geralmente professor de uma coisa chamada educação moral e cívica. Enfiei a viola, melhor dizendo, enfiei o remo na alça do samburá e moitei.

Tive depois disso outros projetos com o mesmo propósito, de fazer alguma coisa pela minha gente, pela minha cidade. Até a vereador, na época em que a vereança não era remunerada, candidatei-me. Por amor à camisa. Fui eleito praticamente por estudantes. Vivíamos no vigor máximo do regime militar. O nosso líder político local era o então jovem vereador Benedito Rodrigues Pereira Filho, ubatubano que a história um dia haverá de homenagear. Rodrigues era integrante da USU - Unidos a Serviço de Ubatuba. Entidade criada por jovens e que marcou significativamente a vida desta cidade. Além de ajudar na construção de escolas em bairros distantes, foi a responsável pela criação da Escola de Comércio, a atual Tancredo Neves.

Os anos foram passando, e fui descobrindo que a política tupiniquim não vivia de ideais, de amor á terra dos antepassados, de sentimentos ingênuos de transformar o mundo. Acabei desistindo da carreira. Hoje, quando ouço discursos ou slogans que falam em mudanças, em resgatar, em caminhos novos, ou quando vejo a edícula onde está instalada a sede da Associação em Defesa do Povo Caiçara, sinto uma angústia danada. Não há mais caiçaras. Caiçara era um modo de ser determinado por três invariantes: a propriedade e o uso da terra, o uso do mar e, principalmente, a religiosidade católica tradicional. Todos os valores, todas as crenças, toda a ética do caiçara fundamentavam-se nessas três invariantes vitais. Suprimidas, esse modo de ser deixou de existir. O mar ficou distante, tornou-se lazer para turistas, e o dinheiro, aos poucos, foi se entronizando como valor quase que absoluto. As terras foram vendidas a troco de banana, as famílias mudaram-se para a periferia da cidade, e os templos das seitas evangélicas tomaram o lugar das capelas.

Não sou passadista, mas entendo como verdade o que diz Simone Weill: "Seria vão voltar as costas ao passado para só pensar no futuro. É uma ilusão perigosa acreditar que haja aí uma possibilidade. A oposição entre o futuro e o passado é absurda. O futuro não nos traz nada, não nos dá nada; nós é que, para construí-lo, devemos dar-lhe nossa própria vida. Mas para dar é preciso ter, e não temos outra vida, outra seiva a não ser os tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, recriados por nós. De todas as necessidades da alma humana não há outra mais vital que o passado."


Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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