Num desses dias de verão, desses em que a gente fica naquela modorra, rolando na cama prá lá e prá cá, reagindo ao violino desafinado dos pernilongos com tapas irrefletidos na própria orelha, meu corpo, todo suado, não agüentando mais esperar a alma para se juntar a ele, levantou-se impetuosamente e, tentando vestir as chinelas havaianas subservientes, ali, aos pés da cama, saiu em direção à cozinha em busca de um cafezinho. O que havia na garrafa térmica estava quase frio. Não refleti sobre essa incoerência tecnológica, bebi um golinho, acendi um cigarrinho e fui para o quintal, à toa, aspirando o ar fresco da manhã. Entre uma tragadinha e outra, fiquei por lá, perambulando, por algum tempo, mexendo aqui e ali, botando reparo nas plantas e nas poucas árvores que possuímos. Os primeiros ruídos do amanhecer chegavam distintos no cantar de um galo pelas redondezas, na chiadeira de um casal de corruíras, quando, subitamente, me senti transportado para vários lugares do passado. Foi um atropelo de sensações, de imagens, pessoas, conversas, cheiros, sons. Quando voltei à realidade do quintal, bateu-me uma angústia devastadora e um contabilizar de despedidas definitivas, de coisas irremediavelmente perdidas e um saldo negativo na alma. Comecei então um inventário. No bestunto, fui anotando aqui, apagando ali, multiplicando o valor de algumas coisas, subtraindo outras logo adiante e cheguei à conclusão de que, nos dias de hoje, quase nenhum dos bens pelos quais me empenhei tem valor, nem de uso, nem de troca, nem mesmo como sucata ou troco para se carregar no bolso. Concluí pelo estado falimentar do espírito. Olhei o relógio, entrei em casa, troquei de roupa e sai porta afora, empurrado pelas obrigações contratuais desta vida besta, burocrática, que levo neste asilo litorâneo, em que me tornei mero locatário. E cá entre nós, com uma vontade cínica de me tornar inadimplente.
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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