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Mesmo que proibido, devido às crenças e superstições em torno daquele morro e que ali vivia o Boitatá1, o menino tocador de flauta e outros curumins, depois de atravessarem a perigosa foz de Yperoig2, chegaram à pequena e encantadora prainha do Curuçá3. Entre brincadeiras de praia e de mar, Jagoanharo4, o menino da flauta, observou um contínuo movimento de árvores e arbustos em certa parte da mata e que dali saia também um som suave. Curioso, convidou seus amigos para ver o que seria aquilo, mas com medo, ninguém o acompanhou. Jagoanharo era destemido, entrou na mata e descobriu uma gruta, de onde vinha o vento e o som. Apenas com sua inseparável flauta, dirigiu-se ao interior da caverna guiado por uma fosca luz que vinha de dentro; andou mais de duzentos passos e descobriu que o clarão vinha de cima, por uma brecha larga pela qual se enxergava o topo do morro; o túnel continuava, agora estreito, reluzente e “calçado” com pedras preciosas. Não arriscou em prosseguir, pegou sua flauta e pôs-se a tocar; a acústica maravilhosa fez o som ecoar por todas as brechas do morro, até a aldeia distante ouviu a música do menino. Voltou à praia onde seus amigos já não mais estavam. Andando pela costeira voltou à aldeia, onde seu pai, o índio Coaquiira5, o esperava com um cipó de timbopeva nas mãos..., mas não contou a ninguém a sua descoberta. Ao amanhecer de certo dia, tocando sua flauta na praia de Yperoig, o menino pela primeira vez viu a “serpente” de fogo que saiu voando do alto do Curuçá, sumindo no horizonte. Intrigado com tal visão lembrou-se das pequenas chamas que avistara no interior da caverna: - Talvez sejam aquelas pequenas luzes, que juntas, esvoaçaram pela abertura no alto do morro? Pensou o pequeno curumim. Aproveitou que a aldeia ainda dormia e da pequena canoa despojada na praia, em sua curiosidade e coragem remou até a prainha e mais uma vez entrou na gruta. Daquele ponto onde avistava cintilações de chamas, seguiu engatinhando o estreito túnel, até chegar a um lugar mais confortável, na qual pode ficar de pé; ali descobriu uma carcaça, esqueleto gigante de um animal que nunca tinha visto (provavelmente um Gliptodonte6). Mesmo amedrontado prosseguiu e, a menos de cem passadas sentiu uma corrente de ar mais fresco, o que fez continuar e tão logo se deparar com a “saída” do túnel7, uma caverna mais ampla, que despojava a sua frente um exuberante manguezal. Percebeu então que o túnel atravessava todo o morro do Curuçá, pois dali conseguia avistar o majestoso Votuporanga8 (hoje chamado de Pico do Corcovado). Diante de intensa mata e imenso manguezal, decidiu voltar; encheu o ajó9 da flauta com pedras preciosas e iniciou a volta... Na aldeia todos se assustaram, viram e ouviram a fúria do Boitatá; a “serpente” de fogo, desta vez chegou a incendiar o topo do Curuçá e, do curumim Jagoanharo, nunca mais se teve notícias, só se ouvia o som de sua flauta. Talvez, por ser “de cascalho”, o estrondo abalou as estruturas do morro e ocorreu um deslizamento interno, prendendo o menino lá dentro da caverna. Bem mais tarde, com a chegada dos portugueses e com a presença dos jesuítas José de Anchieta e Manoel da Nóbrega na aldeia de Yperoig, os catequistas também observaram o Boitatá e constantemente o som de uma flauta que vinha do Curuçá; sabendo do fato ocorrido com o pequeno índio e aproveitando o momento festivo da “Paz de Iperoig”, cravaram no alto do morro do Curuçá, uma CRUZ, que teve duas finalidade: firmar o catolicismo na terra Tupinambá e acalmar a “alma da onça”. A flauta silenciou. * Até então, Curuçá, pela característica geológica do local, significava lugar de abundante cascalho, seixo; após o som da flauta e do cruzeiro, Curuçá aderiu também o significado de: “lugar de muita música” e lugar da “Cruz Grande”. Ybyty Curuçá = Morro de cascado - Morro da música - Morro da cruz; hoje, Morro do Curuçá com a Gruta do Curuçá. 1 Boitatá: Lenda indígena: Serpente de fogo que mata quem destrói as florestas. Cientificamente conhecido como FOGO FÁTUO: Fenômeno ligado à decomposição dos corpos de seres vivos. Nesse processo, as bactérias que metabolizam a matéria orgânica produzem gases que entram em combustão espontânea em contato com o ar, explode e gera fogo esvoaçante. O fogo-fátuo chegou a ser descrito, ainda em 1560, pelo jesuíta português José de Anchieta: “Junto do mar e dos rios, não se vê outra coisa senão o boitatá, o facho cintilante de fogo que rapidamente acomete os índios e mata-os.”
2 Yperoig: Foz/Rio de Tubarões 3 Curuçá: Cascalho, seixo 4 Jagoanharo: Nome indígena: Aquele que tem a alma de Onça 5 Coaquira: Nome do índio chefe da aldeia Tupinamba de Yperoig (Ubatuba); mais tarde se transformou num Tamuya (Tamoio), quer dizer: o avô, o mais velho, o mais antigo e com isso, postou-se como um dos cinco guerreiros que formaram a “Confederação dos Tamoios”. Os outros quatro guerreiros eram: Cunhambebe, Pindobuçú, Araraí e Aimberê 6 Glyptodonte: Animal pré-histórico, ancestral comum dos atuais tatus, nativo da América do Sul; media cerca de 3 metros de comprimento e pesava cerca de 1,4 toneladas, equivalente em forma, tamanho e peso a um Volkswagen/Fusca 7 Saída do Túnel: Gruta, caverna localizada na Av. Félix Guyisard, após a ponte sobre o Rio Grande de Ubatuba 8 Votuporanga: Colina bonita 9 Ajó: Bolsa, recipiente
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