Naquela Ubatuba, Aládio, não havia nenhuma das comodidades de hoje, promovidas pelos avanços da ciência e pela parafernália tecnológica. Apesar de que a tecnologia, quanto mais avança, quanto mais necessidades atende, mais necessidades cria, tornando o homem dependente de instrumentos e utensílios que não passam de prolongamentos de seus órgãos, de seus membros, de suas atividades sensoriais, e, como acontece com as drogas, aliena-o de sua dimensão espiritual. Será por isso que na Ubatuba de hoje nos sentimos tão mal acomodados? Nos tempos de infância, há umas quatro décadas e meia, caro amigo, pouquíssimas casas contavam com energia elétrica, que era distribuída por um gerador, sob os cuidados do seu Baptista de Oliveira. O gerador ficava ali onde é hoje o Ubatuba Palace Hotel, lembra-se? Os que possuíam chuveiro, se não tomassem banho até certa hora da noite, eram obrigados a apelar para o banho de bacia. Poucas casas tinham fogão a gás e mesmo assim não dispensavam o fogão à lenha. Geladeira doméstica? Nem pensar. As carnes eram consumidas de pronto ou salgadas e secas ao sol para serem armazenadas. Em alguns poucos estabelecimentos comerciais havia geladeiras e estas eram a gás, enormes, revestidas de madeira. Os alimentos eram vendidos a granel, do fumo de rolo ao feijão. As sacas ficavam expostas na entrada dos armazéns. O sistema de crédito era o da caderneta, o fiado. Nenhum comerciante, de que me lembre, faliu por causa de inadimplentes. Não havia então Serasa nem SPC, mas tão somente confiança nas instituições sociais, nas relações em sociedade, nas leis do mercado. Os fios de bigode de meu pai e de muitos outros velhos daqueles tempos valiam muito mais do que títulos do tesouro nacional. A duas únicas sorveterias, se não me falha a memória, a de seu Toninho e a de um dos mais dignos ubatubenses que conheci, a do senhor José do Prado, o seu Pradinho (dá-me água na boca só de lembrar do sorvete de creme com ameixas pretas...). Agora, já que estamos falando em coisa gelada, se você fosse extrair um dente, tinha de se submeter ao boticão do Dr Ernani ou ao do Dr Altivo. Parada dura. Tenho traumas de dentista até hoje. Médicos, somente dois ou três. Um deles, canonizado. Ouvi muitas vezes certas velhinhas dizerem: "Esse Dr Fraga é um verdadeiro santo!" Jornais e revistas, nas bancas do Dorvalino e do seu Felix. Atrasavam, mas chegavam. Vinham de ônibus. Vir ou ir de ônibus era menos arriscado que o rally Paris-Dakar. Quatro a cinco horas de jardineira para se chegar à Taubaté. Isso se a estrada não estivesse enlameada das chuvas, o que obrigava o seu Artur (o melhor motorista que já houve na história dos transportes em todo o mundo) a botar corrente nos pneus do ônibus para que este não derrapasse. Comprava-se a passagem na agência, que ficava na praça Nóbrega, ao lado da Casa Jehú, entregava-se a alma a Deus e o corpo às mãos do seu Artur. Quem conheceu aquela trilha de índios e de tropas de burros de carga, que hoje se chama SP qualquer coisa, sabe do que estou falando. Era possível também se comunicar pelo telégrafo, por carta ou, pasmem, por telefone. Algumas poucas casas tinham telefone. Para uma ligação interurbana, você dava uns toques no gancho do aparelho, a telefonista local atendia (e é bom lembrar que naquele ninguém falava o medonho "quem deseja?"), passava o número do telefone e o nome da pessoa com quem queria falar, e ela então lhe pedia para aguardar. Aguardava-se um, dois, três dias... Isso se a linha, ou seja, se o fio não quebrasse pelo caminho. Mas as dificuldades das distâncias eliminavam a pressa e propiciavam prosas demoradas quando das visitas e dos reencontros. O que hoje chamamos sede do município, naquela época ia até a rua Gastão Madeira, dali em diante era só mato, uma casinha ali, outra acolá e trilhas permeando-as. Diversão popular era o futebol, a praia do Perequê-Açú, o Risca-Faca, o velho cinema, onde é hoje o prédio do Fórum, e depois, construído ainda na década de cinqüenta, o cine Iperoig. Criançada brincava era nas ruas de terra e nos incontáveis terrenos baldios. Roupa boa ou nova, só para ir à missa, ao culto, ao cinema, aniversário ou batizado. Nada de grife. O que valia era a qualidade do tecido. Todo mundo se conhecia biograficamente, e o menos ilustre ou o mais parvo e pitoresco daqueles tempos não morria no anonimato ou esquecido como sói acontecer com os ilustríssimos de hoje em dia. Vivia-se em paz. Não que não houvesse algumas inimizades ou mesmo rancores profundos, mas estes limitavam-se a alguns clãs ou decorriam das disputas políticas. A polícia tinha uma só viatura, um jeep velho, e as celas, de vez em quando, abrigavam um ou outro dos cachaceiros mais renitentes. O parágrafo acima ficou longo, caro Aládio, porque a idéia é uma só, embora não seja possível falar de tudo aqui: mostrar que, como diz o poeta, tudo vale a pena se a alma não é pequena, que a vida era aprazível naqueles tempos, que o conceito de conforto é relativo, e que, mesmo com todas as dificuldades impostas pela natureza, pelo meio ambiente, pelas circunstâncias de cidadezinha provinciana, esquecida entre o Atlântico e a Serra do Mar, éramos felizes e não sabíamos!
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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