O clima endoidou de vez. As águas que eram de março vieram em abril. Há muito tempo não via a força das águas como recentemente no rio Grande, o rio da cidade, o rio da minha infância. Águas barrentas, velozes, extravasando violentamente das margens, levando consigo tudo o que havia pelo caminho, animais, árvores, arbustos e até a velha ponte do bairro da Ressaca. No dia quatro deste mês, por volta das duas da madrugada, fui acordado por um amigo que me perguntava nervoso ao telefone se eu tinha algum jornal que contivesse a tábua das marés. Sonolento, não entendi direito e perguntei o motivo; respondeu-me que sua casa, que fica pertinho do rio, estava inteiramente alagada e precisava saber o horário em que vazaria a maré. Como não tinha nenhum jornal disponível, saí de casa às pressas para encontrar o amigo e colocar-me à disposição para ajudá-lo no que fosse possível. Confesso que fiquei assustado assim que cheguei e me deparei com a velocidade das águas do rio Grande, com o tamanho que o rio ficara, com as árvores enormes que passavam boiando, carregadas pela correnteza. Depois de algumas horas, ficamos sabendo, através de um velho pescador, que a maré começaria a vazar por volta das cinco, seis horas da manhã. Não nos restava muito a fazer a não ser esperar que as águas baixassem, que o mar de maré-baixa recebesse aquelas águas barrentas e assustadoras. No dia seguinte, fiquei assuntando sobre o ocorrido, sobre o fenômeno e concluí que há muita metafísica nos rios. Na verdade, naquela noite não choveu. O que aconteceu foi uma queda, um despencar das águas sobre as montanhas da Serra do Mar. Fiquei então a imaginá-las caindo do céu, na escuridão, descendo pelas vertentes, escorrendo lúbricas pelos troncos das árvores, esparramando-se sobre o lençol de folhas caídas, resvalando pelas pedras, penetrando os sulcos da terra, buscando ansiosas e promiscuamente os mansos regatos para engravidá-los e torná-los rios excitados e ansiosos por ejacularem no rio Grande que, até então, estava quieto lá na planície, comportado em seu leito, metido em suas margens. Essas águas caídas do céu, como ocorre com certas pessoas, perverteram o rio Grande, forçaram-no à intemperança, a transgredir, levaram-no à violência excessiva das correntezas, a ultrapassar seus limites para fazer o mal. Todavia, a esperança de um rio é sempre o oceano. Sem o oceano, o rio, não tendo para onde ir, ou se torna um lago acidioso ou desaparece na terra sedenta. E naquele dia o oceano estava lá, ao fim de seu percurso, para recebê-lo e regenerá-lo. As pessoas também são assim. Lá um belo dia, nas correntezas da vida, sem ter para onde ir, percebem que tudo é fugaz e que o sentido da existência humana está para além da foz, no âmago do Oceano absoluto para onde haveremos de retornar.
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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