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COLUNISTA
Eduardo Souza
08/04/2005 - 09h19
O cambucá e a cultura caiçara
 
 

Quem aí já comeu cambucá levanta a mão! Como é? Que gosto tem? Como falar do cambucá se no mundo semelhante coisa não há? O cambucazeiro é árvore silvestre, nativa, esguia de porte, de tronco liso e a ramagem fica lá no bem alto onde frutificam.

Lembro-me de que arrancávamos a estilingadas os cambucás dos três pés que havia na beira do rio Grande, perto do grupo escolar Dr. Esteves da Silva. Sim, usávamos o estilingue, uma espécie de videogame da minha infância. Todo moleque tinha um.

Na mesma margem do rio Grande, no quintal da casa de dona Madalena, já falecida, a segunda mãe da criançada que estudava naquele grupo escolar, onde ela era funcionária, ainda há um velho cambucazeiro, talvez um parente daqueles outros três. O filho de dona Madalena, o Laci (mentiroooooso!), com quem compartilhei bons momentos da infância, prometeu-me uma muda há trocentos anos. Tô esperando. Pela demora, ele deve estar tentando algum tipo moderno de enxerto ou quem sabe esperando a vinda de algum técnico da EMBRAPA para resolver o caso.

A boca fica cheia d’água quando se pega a falar do cambucá. Fruta igual não há. Mas não é só do cambucá que vive o pomar da minha memória, há outras coisas da infância caiçara, desse modo de ser praiano que, aos que têm menos de quarenta e não nasceram em Ubatuba, torna-se difícil descrever ou explicar.

Quando alguém hoje em dia me fala emocionado em resgatar a cultura caiçara, fico com o pé atrás. Sempre me pergunto se esta palavra - resgatar - tem para esse alguém o sentido de tirar do esquecimento e se é clara a finalidade que motiva esse intento. Fico ensimesmado, duvidando de que esse lidar com o folclore não passe de mero hobby que, para alguns, acabe por servir de ganha pão em algum órgão público ou noutra organização.

Não vejo como resgatar alguns desses bens da cultura caiçara se não se tiver por meta integrá-los à atividade econômica, atrelá-los ao turismo. Isso porque aos ubatubenses de hoje, a cultura caiçara não tem mais sentido, não lhes é vital. E sei também que tudo aquilo que for resgatado não será mais do que um espelho embaciado do que foi um dia. Hoje, uma apresentação de, por exemplo, um grupo de dançadores de xiba ou de São Gonçalo, mesmo que dentre eles haja um ou outro remanescente dessa cultura, acaba sendo algo deprimente. Pelo fato de serem pessoas pobres e de não haver nenhuma forma de recompensa material por essas apresentações, por esse "resgate". Nem mesmo têm a possibilidade de transmitirem essas tradições às novas gerações, porque estas vivem outra realidade social. Estão noutra.

A cultura é a expressão viva do modo de ser de um povo, a expressão espiritual de uma comunidade. O caiçara era o amálgama dos modos de ser do português e do índio, alinhavados e bem costurados pelo catolicismo. O espaço vital, o contexto em que se realizou a cultura caiçara não existe mais. O município, ao longo de algumas décadas, foi submetido a um processo radical de aculturação devido ao turismo e às ondas de migrantes que aqui se espraiaram. Para complicar, ocorreu aqui, e creio que em tudo quanto é lugar do mundo, uma fabulosa proliferação de seitas religiosas sem nenhum vínculo com a tradição, despidas de rituais e de símbolos que fazem das grandes religiões essa incomensurável ponte entre o mundano e o divino.

Há coisas da minha infância praiana que, assim como o sabor do cambucá, são inexplicáveis e quase incomunicáveis a quem não as vivenciou e que hoje não têm mais sentido. Falei acima da dança de São Gonçalo porque era comum, na exígua sala da casa de minha avó materna, presenciar essas manifestações do sincretismo religioso que, no passado, tão bem serviram à fé, à aproximação, à fraternidade entre os habitantes desta terra. Pois é, como o sabor do cambucá, que dá água na boca, há também outras coisas, modos de ser caiçara que ao bailarem na memória, acabam por encher os olhos d’água. Para finalizar, aproveitando o ensejo, ô Laci, mentirooooso! cadê a minha muda?!


Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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