Julinho Mendes | |
Não nasceu precoce, aliás, sua gestação foi de dinossauro, durou 12 anos. Dentro do ventre teve como adquirir experiência e aprender a não cometer erros infantis. Nasceu! Melhor dizendo, pariu! Tinha tudo para ser uma criança forte, bonita, sadia, mas não foi o que aconteceu. Na verdade nasceu problemática, tinha em seu DNA uma doença genérica introduzida no Brasil no ano de 1500 pelos portugueses. Ao abrir os olhos adquiriu uma infecção administrativa crônica e, ainda na Santa Casa, contraiu infecção hospitalar. Nos seus primeiros dias de vida e de desenvolvimento, seus progenitores, pensavam que berimbau era gaita e à moda baiana, mas totalmente fora de ritmo e descompassados, não deram amor e carinho àquela criança; em vez de leite extraído do peito, deram-lhe mamadeira com bico de borracha dura. O banho era só quando chovia. Cagada, ali ficava por várias semanas, enfim, após um ano de vida, a pequenina criança administrativa veio a falecer. Naquele pequeno caixão seu corpo foi velado a noite toda. Prefeito, vice, secretariado, assessores, partidários, vereadores... todos estavam ali, na verdade sem sentimento de dor alguma, apenas tentavam tocar berimbau. Não entendiam o porquê daquela morte e achavam, no soar de seus péssimos berimbaus, que a enfermidade da menina tinha todo aparato médico, especialistas, equipamentos cirúrgicos, material de higiene, leito confortável e até médicos cubanos foram importados para os cuidados da menina administrativa. Como morrera aquela criança? Seguiu o cortejo fúnebre ao som de frouxos berimbaus pelas ruas esburacadas e de calçadas cheias de mato da cidadezinha. Nas alças do caixão vinham: na comissão de frente o prefeito e seu vice (esse, como sempre, carregando um paraquedas nas costas), depois, pares de vereadores e demais secretários que se revezavam em função de não deixar o som frouxo do berimbau acabar. Apesar de o difícil caminhar pelas ruas esburacadas da cidade, o trecho mais difícil do trajeto, carregando o caixão, foi dentro do cemitério, pois o mato cobria o labirinto de caminhos, carrapichos grudavam nas pernas, cipós faziam os caminhantes tropeçarem... Um, lá de traz argumentou com seu par de alça, que se soubesse que o cemitério estava cheio de mato teria trazido uma foice para abrir a picada. E o berimbau tocava... feito berro de intanha. Na boca da cova, procuraram pelo padre para rezar a missa à pequena defunta. Procura daqui, procura dali, até que avistaram o padre dando volta pelo cemitério; chamaram-no e pediram explicações de sua ausência naquele momento, em que o padre respondeu: - Estava procurando a Capela de Oração que existia aqui no cemitério. Que fim deram à capela? Ninguém respondeu, mas todos sabiam o que tinha acontecido com a Capela. Depositado o caixão no fundo da cova, as mãos dos berimbalistas travaram e calaram-se os berimbaus. O prefeito pediu silêncio e que todos ali presentes fechassem os olhos. Naquela escura luz aos olhos, a imagem de um índio apareceu (era a figura de Coaquira) para todos e ao ouvido de todos, o índio falou: - Aqui é um lugar sagrado e assim como tal tem que estar sempre cuidado, para que as pessoas que aqui trazem seus entes queridos, para serem sepultados, não tenham que amassar mato, pegar carrapatos e carrapichos em suas pernas, tudo tem que estar bonito; se vocês andarem por aí encontrarão vasilhas cheias de água propicias para a proliferação do mosquito da dengue. Vocês estão vendo aquela pequena edificação ali? - Continuou falando a figura de Coaquira, o índio. - Ali era uma Capela Sagrada onde antes de ser enterrado, o defunto era velado e o padre juntamente com os familiares rezavam e encomendavam a alma do morto. As administrações de politiqueiros ambiciosos anteriores permitiram a transformação da Capela em escritório particular. Alguns daqui são cúmplices disso. Agora vocês, maus tocadores de berimbaus, precisam devolver a Capela ao cemitério, para o padre conduzir as rezas e para o povo se sentir confortado espiritualmente. Vocês, horrorosos tocadores de berimbaus, não estão percebendo que, além de tudo, esse lugar é um lugar de fazer política e gerar manutenção de poder. Fazer política aqui não é encher o cemitério de cabos eleitorais e sim e simplesmente manter esse lugar limpo, devolver a capela, oferecer um cafezinho com bolachas e bolo de fubá aos familiares dos mortos... o povo reconhecerá isso! - Finalizando, o índio, honrado guerreiro Tupinambá, em tom bravo e puto da vida, ainda falou: - A dívida de 70 milhões da Santa Casa NÃO é do povo, não; o povo paga em dia seus impostos. A dívida é de vocês tocadores e ex-tocadores de berimbaus desafinados... Paguem a dívida e deem condições dignas de saúde ao povo! Um som de trombeta ecoou pelo cemitério, o caixão abriu e um bando de tangarás, ornados com as cores da bandeira da cidade, passou a cantar e a dançar ciranda, e como nuvens dissipou no céu. A pequenina criança administrativa ressuscitara, levantou-se do caixão e correu ao colo de sua mãe querida dando, no ano que se inicia, mais uma oportunidade aos tocadores para mudarem de instrumentos e começarem a aprender tocar piano. É, minha gente, a esperança continua e se pelo menos os caras aprenderem a tocar rabeca tá bom demais!
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