Para sobreviver neste mundo, é fundamental ao homem, como o ar que ele respira, que tenha crenças. É necessário, tanto ao cientista, quanto ao servente de pedreiro. O sujeito tem de contar com a consistência do mundo. A desordem, a inconstância, a incredulidade o levaria ao caos. Há sempre uma estrutura, um sistema criado ou interpretado a que o homem acredita, integra-se. Quando se rompe ou quebra, sobrevém o espanto, a reflexão, a necessidade de buscar uma resposta, algo a que se possa ater. Ao aproximarmo-nos de um cruzamento, não refletimos, não questionamos se o semáforo poderá pifar de repente e nos levar a uma portentosa colisão. Turistas deitados na areia da praia para pegar um bronzeado não ficam matutando nas possibilidades de um tsuname ou de que lhes caia na cabeça um meteorito. Apesar de que, na Ásia, neguinho nativo vai ficar esperto por um bom tempo, com um olho no gato e outro no peixe na frigideira. Mas depois de um certo tempo, a dúvida e o temor cederão lugar à crença, tudo retornará ao habitual, porque a vida é sempre ter ao que se ater e seguir adiante se fazendo e refazendo. Zubiri é quem diz que não temos a crença, mas ela é que nos têm. Estas reflexões extravagantes me ocorreram quando pensava em questões políticas que me advieram ao lembrar de um fato pitoresco ocorrido na adolescência. Era costume nessa época aparecer sempre alguém com uma bola de plástico ou de cobertão (escreve-se assim?) e convidar a turminha para uma pelada num terreno baldio, na praia ou na quadra de saibro que havia na praia do Cruzeiro, próximo à foz do rio Grande. Neste local, certa ocasião, estávamos em meio a um rachinha quando o Déo, que era o dono da bola, não sei bem por que cargas d’águas, simplesmente apanhou-a e levou-a embora consigo, deixando-nos feito bobocas, sem saber o que fazer, ao que se ater. Depois de alguns instantes, um dos rapazes resolveu buscar na casa dele uma outra bola, mas já não havia ânimo, e a turma acabou dispersando. Esse fato fez-me pensar que a democracia, por vezes, é como aquela bola que, no meio da partida, nos foi tirada de repente. Tirada por aqueles que se sentem donos dela, que a reduzem a mero processo eleitoral, a figura de retórica; ou por aqueles que simplesmente dela se utilizam como de uma escada para subir ao poder e que depois é jogada fora. A ação política pode nos impor um regime totalitário, de direita ou de esquerda, surpreendendo-nos, como um tsuname, justamente quando estávamos imersos em nossa crença no sistema, no estado democrático de direito, na estabilidade e na perenidade das coisas do mundo. Na adolescência, a bola que o Déo levou embora no melhor do rachinha foi uma sacanagem tsunâmica, inacreditável.
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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