Até certa época, havia em Ubatuba o que chamamos de bairrismo, que se fazia sentir em determinadas situações, principalmente nas disputas futebolísticas. Quando certos bairros se confrontavam, torcida e jogadores às vezes chegavam às vias de fato. Perequê-Açú, Itaguá, Lázaro, Sertão da Quina, são alguns dos bairros de que me lembro cujos times de futebol estimulavam confrontos exacerbados. Interessante é que havia também o bairrismo regional. As cidades do Litoral Norte quando se confrontavam, em qualquer modalidade esportiva, principalmente se os pelejadores fossem Ubatuba versus Caraguatatuba, o tempo esquentava. Desaprovado por alguns integrantes da nossa intelligentsia, esse bairrismo, no entanto, me parecia benéfico. Estimulava certo patriotismo. A cidade, a terra, o chão, o lugar dos nossos antepassados, o cenário de nossa história, de nossas biografias, nessas situações, colocava-se acima de todos nós e nos unia na defesa dos interesses de Ubatuba, a pátria concreta. Deus em primeiro lugar, em seguida a família e a cidade. O Brasil vinha depois. Ubatuba sim, sim, sim. Apesar desse bairrismo local, havia uma comunidade ubatubana. Comungava-se a mesma cultura caiçara, a mesma religiosidade, o catolicismo, uma história comum. Havia um perfil - éramos ubatubanos, para o bem e para o mal. O bairrismo acabou, a cultura caiçara não existe mais. As causas são várias, dentre outras: a religiosidade católica que perdeu prestígio e presença social hegemônica, a proliferação de seitas protestantes, cujos adeptos renegaram suas tradições que eram alicerçadas no catolicismo (ver exemplo da Festa de São Pedro Pescador que perdeu a espontaneidade a partir do momento em que a maioria dos pescadores deixou a Igreja), o crescimento demográfico resultante da imigração desenfreada, melhorias e abertura de novas estradas, a presença das drogas e o contato amiúde com o turista. São vários os fatores dessa aculturação, e o nosso perfil, aquilo que nos distinguia das outras cidades, sucumbiu, transformou-nos em um conglomerado em vez de uma nova comunidade. Penso que Ubatuba nunca mais voltará a ser uma comunidade. Pelo menos enquanto estiverem acima dela os interesses individuais. Talvez, as verdadeiras comunidades venham a se formar somente nos bairros. Não em virtude de um novo bairrismo, mas, quem sabe, em decorrência do que o bairro possa oferecer à melhoria da qualidade de vida de seus próprios moradores. Cada região ou cada bairro de Ubatuba tem potencialidades distintas, tem vocações econômicas que poderiam ser subordinadas às diretrizes do plano diretor de desenvolvimento, poderiam ser realizadas em proveito dos próprios moradores dessas localidades. Conceder a essas pessoas privilégios e prioridades na exploração econômica desse potencial. Ocorrem-me exemplos de regiões ou de bairros que hoje poderiam estar promovendo o ganha pão de seus habitantes: Sertão da Quina, Fortaleza, Corcovado, Itaguá, Itamambuca etc. O bairro do Sertão da Quina, por exemplo, é um reduto da cultura caiçara e do catolicismo. Ingredientes propícios à exploração do turismo cultural e religioso. A região cortada pela rodovia Oswaldo Cruz, por sua vez, poderia estar explorando seu potencial turístico natural. Essa é uma região que, além da Mata Atlântica, tem rios, cachoeiras, tem as instalações da Estação Experimental (hoje jogada às traças depois que o engenheiro Gentil Godoy foi embora) e também algumas capelas e a igreja Nossa Senhora de Fátima. Era só os moradores se organizarem, cuidarem melhor dos seus bairros - uma caiaçãozinha nas fachadas das casas residenciais e comerciais caía bem, não? Flores em jardineiras e terrenos baldios (primaveras? mimos?), calçadas melhor cuidadas, conservação da ciclovia etc. A impressão que se tem, depois que se desce a Serra do Mar, percorrendo a SP-125 em direção à cidade, é lastimável. Um visual desagradável. Se é uma região pobre, não quer dizer que precise, necessariamente, ser feia, molambenta. Agora, o mais importante de tudo é o entendimento, a consciência da necessidade dessas providências por parte de cada morador. Fundamental também a parceria morador - administração pública - empresários. Quem, melhor do que o próprio morador do bairro para cuidar do meio ambiente e fazê-lo auto-sustentável quando o que está em jogo é sua própria subsistência? Esse cuidado seria para esse morador uma necessidade vital. Ambientalismo com produtividade. É sonhar demais?
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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