Há certas coisas que, por menores e insignificantes que sejam aos olhos dos tempos atuais, para mim e para algumas pessoas que conheço têm um significado especial. São como símbolos: evocam, tornam presentes situações, pessoas, eventos do passado, contam nossas histórias. Outro dia, por exemplo, um e-mail da amiga Maria da Cruz levou-me a refletir sobre o tema. Maria fez-me uma brincadeira sobre mastigar folhas de canema. Planta de que não me lembrava. Ela, então, disse-me que se tratava da erva de Santa Maria, que nossos avós nos davam para combater a verminose. Preparavam um caldo verde ou nos faziam comer as folhas. Eu e a Maria somos do tempo dos chás caseiros. Foi o que bastou, a simples menção da erva, fez-me lembrar do chá de broto de goiabeira que minha mãe me fez beber por causa duma dor de barriga repentina e oportuna, no dia em que iria pisar pela primeira vez numa sala de aulas. Há 52 anos, guardado na memória, este evento veio à superfície à simples menção de uma erva. Essas coisas, as da cultura caiçara de um modo geral, são hoje de nenhuma utilidade. Ao menos no sentido moderno que se dá à palavra utilidade, que acredito seja exclusivamente materialista e hedonista. Essas coisas, sejam elas utensílios domésticos, plantas medicinais, ferramentas e tantas outras que pertenciam ao universo da infância, quando nos deparamos com algumas delas, nos servem de anzol e isca para pescar nos parcéis da memória. Porém, aos olhos da “modernidade”, são vistos unicamente como folclore, como objetos de decoração. São como uma espécie de Aleph, o do conto do Borges. Concentram em si intensos momentos, situações. São eloqüentes. Dão-nos identidade. Contribuíram de certa forma para sermos o que somos. Contam histórias, as nossas histórias. Identificamo-nos com essas coisas: uma determinada planta, uma espécie de árvore, um utensílio doméstico, uma peça de vestuário etc. Cada uma delas têm uma ou mais histórias de nossas vidas. Um simples ferro de passar roupas (à brasa de carvão vegetal) conecta-me à minha mãe, nas tardes de verão, passando pilhas de roupas, cantando o último sucesso da Dalva de Oliveira, que ela decorou de tanto ouvir pela Radio Nacional do Rio de Janeiro. Já um lampião ou uma lamparina leva-me à casa de minha avó, às sombras balouçantes nas paredes de taipa de pilão, caiadas, que tanto medo me impingia. As sombras nas paredes, o martelar dos sapos e o cricrilar dos grilos no quintal, a respiração pausada, as batidas do coração nos ouvidos, as histórias de assombrações contadas para nos manter na linha, até que o sono vencia o medo... As coisas de hoje não permanecem muito tempo conosco. Não têm tempo de fazer moradia em nossas almas, de agregar pelo menos uma historiazinha que seja para contarmos aos filhos e aos netos. São efêmeras, são fugazes. São objetos de consumo. São feitas para serem consumidas, para serem substituídas por outras que surgem como novidades com detalhes de aprimoramentos tecnológicos para resolverem certos problemas que acabam gerando outros problemas e assim sucessivamente, num processo angustiante e vazio...
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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