Julinho Mendes | |
Estava eu vagando pensamento deitado sobre a rede da varanda. Balanço vai, balanço vem, veio-me a vontade de pegar a canoinha e fazer uma pescaria. Nesse momento toca o telefone e para minha surpresa era o meu amigo João de Souza, coincidentemente, me convidando para uma pescaria, num lago que existe lá na Fazenda Jundiaquara. Dizia ele que o lago estava cheio de peixe-galo e peixe-porquinho. A minha pescaria sempre foi no mar. Nunca tinha pescado em lago, mas como pescador que se presa nunca rejeita a emoção de ferrar e sentir, qualquer que seja o peixe, mais que depressa arrumei os apetrechos de pescaria e me mandei para a casa de João. No meio do caminho é que dei por conta do que o João me disse: Pescar peixe-galo e porquinho em lagoa? Sou uma besta mesmo! Mais uma vez caí no conto do João, pois esses peixes são do mar e não de lagoa; talvez pescaríamos alguns bagres jundiá ou traíras. Esse João não tem jeito mesmo, é cheio de contar histórias. Levava eu, a pedido dele, cinco quilos de sal grosso; pensava que seria para salgar os peixes e para fazer um assado na brasa. Chegando em sua casa, encontrei a dona Maria sentada no banquinho de fora. - Bom dia, dona Maria! Cadê o João? - Perguntei. - O João tá no fundo do terreiro cuidando do jegue, entra lá Julinho! Falou a sofrida mulher (sofrida, no sentido de ouvir e aturar durante 50 anos as mentiradas do marido). Fui até o fundo do terreno e encontrei João, que nem boa tarde deu; foi logo perguntando pelo sal grosso. - Cadê o sal grosso, Julinho? - Taá aqui, João! Pra que tanto sal assim, João? - Perguntei curioso. - É pra dar pro jegue! Respondeu João sem o menor constrangimento. Passou a mão nos 5 quilos de sal e enfiou goela adentro do bicho. O jegue, coitado, parecia um trapo. O arco da costela parecia reco-reco de escola de samba; a pelanca da barriga arrastava pelo chão; as ventas do nariz, pareciam dois canos de quatro polegadas. - O que é isso, João? Que bicho maltratado é esse? - É assim mesmo, Julinho! Esse jegue é pescador de traíra! Fez o jegue comer mais um quilo de sal e saímos para a pescaria. Os apetrechos de pesca do João eram dois latões de querosene de trezentos litros, e o pobre jegue, que de minuto em minuto olhava para o céu, pedindo pra chover. Saímos... Em vez de seguirmos pela praia Grande, que seria mais perto, fomos pelo bairro da Estufa, que é cinco vezes mais longe. Perguntei o porquê desta trajetória e João me respondeu que nas condições que o jegue estava, ele não poderia ver água e muito menos o mar, e que pela Estufa, o jegue ficaria com mais sede ainda. Seguimos... O jegue em questão é produto de cruzamento da mula sem cabeça que existia na fazenda, com o jumento do Beto. Achei que o bicho não agüentaria chegar na tal lagoa com vida. E para completar o sacrifício, João fazia com que o jegue caminhasse pelo mato, fazendo com que a pelanca da barriga que se arrastava pelo chão enchesse de carrapatos e carrapichos. Nesse percurso, João fez mais uma crueldade: fez questão de passar com o jegue rente as ruínas da casa do coronel, onde ainda existe um prego que por muito tempo sustentou a cabeça da mula (mãe do jegue) que morreu junto com o coronel num acidente. Naquele momento o jegue parou, olhou o prego e, por uns dez minutos, chorou que nem criança. O bicho de marrom estava branco, com a boca espumando feito siri na lata. Eu não agüentava em ver tanto sofrimento do animal; estava querendo voltar e tratar do bicho, mas João me acalmava falando que era assim mesmo. - Sabe Julinho, o peixe-galo e o porquinho em época de acasalamento, gruda um no outro e voa parecendo borboleta; eles saem do mar e vêm nessa lagoa. A noite eles saem do lago e vão pra roça do japonês comer milho e fuçar mandioca! - Ah, João, pra cima de mim, rapaz? Era um jegue e um burro. O jegue a cada história de João dava uma rinchadinha e o burro, que era eu, cada vez ficava mais nervoso com os contos do pacato cidadão, “o homem do pé rachado”. Chegamos ao tal lago, o que foi um alívio para mim e principalmente para o jegue. Comecei a tirar os anzóis, amarrar as chumbadas, preparar a vara... quando me veio a proibição: - Julinho, guarda isso rapaz! - Mas João nós não vamos pescar? - Sim, mas com o jegue e os latões de querosene. Pegue aqui e fique na outra margem, que os peixes irão cair lá! Não estava entendendo nada, simplesmente guardei os meus apetrechos e obedeci à ordem. João carcou mais um quilo de sal grosso na goela do bicho e sussurro durante uns dez minutos no ouvido do jegue, uma ladainha que eu não conseguia decifrar. Chegou a hora. João se dirigiu a outra margem do lago, oposto a mim, e o jegue ficou em posição de ataque, ou seja, esperando o berro do João para poder saciar a sede. A sede do bicho era tanta que os seus olhos quando viram água, saltaram para fora. Agüentou, pois sabia que iria saciar sua grande sede com muito gosto. Com a voz parecendo ronco de trovoada ou como diz o Quincas, parecendo a voz do Adoniram Barbosa (você percebe?), João soltou o berro: - Agoooooooora, TONICO LUIZ!!! O jegue pôs-se a beber água pelas narinas... A cada chupada que o jegue dava na lagoa, grudava uma traíra no beiço do bicho; se o peixe grudava no lado esquerdo, o jegue balançava a cabeça, jogando o peixe pro meu lado; se grudava do lado direito, o peixe ia pro lado do João. O bicho estava tão treinado que o peixe caía certinho dentro do latão de querosene; não tive trabalho algum. Entre traíra, bagre, peixe-galo, porquinho e até camarão da água doce, levamos uns 70 kg de pescados. Três horas bebendo água sem parar. O jegue, que há horas atrás parecia ser um arco de serra, agora tava parecendo um elefante. Tava com a barriga que parecia um balão. O jegue, hoje, fica repousando, parecendo cobra jibóia, nos fundos do terreno do João, bem próximo ao rio Acaraú. Quando o jegue dá uma mijadinha, acontece a maior pororoca na boca da barra do canto do Itaguá, fenômeno esse que só acontece na foz do rio Amazonas. - Julinho, a próxima pescaria que iremos fazer será lá na costeira da praia da Fortaleza; já que o João Barreto não pesca nem mixólo, nem sinhá-rosa; levaremos o jegue lá para pescar garoupa, sargo e badejo; que é a especialidade dele! - Falou João, concluindo que para esse tipo de pescaria o jegue tinha que ficar três meses sem beber água, só comendo sal grosso e chupando limão. Obs.: Ouvi essa história do contador de causos de Ubatuba, João de Souza - O poeta do pé rachado -, em 2001, a qual nos deixou muita saudade.
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