Não formuleis desejos... Não é lícito aos mortais evitar desgraças que o destino lhes reserva! (Antígona, de Sófocles)
O ano de 2004 terminou em catástrofe. A mãe natureza (mãe ou madastra?) segou milhares de vidas numa região paradisíaca deste planeta. Não poupou ricos, nem pobres. Em meio aos sofrimentos dos que sobreviveram, num cenário de ruínas e cadáveres, turistas, já no dia seguinte ao desastre, desembarcavam nesses territórios, ávidos pelo tal paraíso recém destroçado... Cá, neste país Atlântico, cujos governantes têm uma inclinação pelo inferno, embora discursem como se estivessem no paraíso, o presidente encerrou 2004 com mais um aforismo de sua pitoresca e sapiente lavra. Disse que o fenômeno, o tsuname, deve servir de alerta para que preservemos a natureza... Será que o pessoal tá achando que esse tal de tsuname é alguma armação dos malignos imperialistas norte-americanos, do George W. Bush? Sei não... Na década de sessenta, tivemos em Ubatuba algo do gênero. Não foi terremoto, maremoto, ou a separação das águas, mas um tremor de terra que assustou muita gente por estas plagas. Na época, morava com meus pais, na velha casa à rua Dr Esteves da Silva, a poucos metros da praia do Cruzeiro. Estava na sala, assistindo TV, quando a terra tremeu. Um pouco antes dessa performance telúrica, havia assistido ao filme Cracatoa, o Inferno de Java, no saudoso Cine Iperoig, e a primeira coisa que fiz, depois de arrancar meu velho pai e meu irmão mais novo para fora de casa, com medo de que, havendo um repeteco, a casa desabasse, foi correr até à praia para ver como estava o mar. Quando vi que o velho mar lusitano estava cheio e manso, só então foi que me acalmei um pouco. A cidade virou um furdunço naquele dia. Essa briga do homem com a natureza não é de hoje. Os antigos diziam que a natureza devia ser respeitada (naqueles tempos não havia os ecochatos) como criação divina, que ela era meio e não fim e que devia ser conquistada e dominada para servir ao homem e não o inverso. Mas, às vezes, a danada, com estardalhaço, se serve dos homens, sem dó nem piedade, como aconteceu agora na Ásia. Sempre que ocorrem esses fenômenos, surgem aqueles que se qualificam como experts no assunto. Há também os que sempre têm algo novo para contar sobre o episódio. Surgem sempre tipos que vão do burlesco ao exótico para pontificar a respeito. Meu cunhado, pescador de mão cheia nas horas vagas, contou-me que, depois do Tsuname, o rio Grande, vizinho de seu quintal, subiu e desceu algumas vezes e que, no mesmo dia, um sujeito viu, à noite, na costeira onde estava, o mar recuar e surgir um praiado onde instantes antes só havia água. Não desacredito. Depois desse tsuname e do deslocamento do eixo da Terra, não duvido de que coisas estranhas possam ter acontecido ou ainda venham a acontecer. Na sexta-feira, véspera de Ano Novo, por exemplo, encontrei, para meu espanto, meu amigo C., puxando, pela calçada da rua Dona Maria Alves, todo desajeitado, por ordem da patroa, o carrinho de feira. Fiquei pasmo! Já no sábado, a nossa Câmara Municipal teve também seu maremoto, que continua até hoje dando repuxo. Um amigo comentava o fenômeno: "Pô, todo mundo fala em democracia, mas não quer saber de respeitar as leis, as regras do jogo, as instituições! Estamos numa revolução?! É a tomada da Bastilha?! Será que o povo não vai aprender que o indivíduo pode fazer qualquer coisa que não esteja legalmente proibido, enquanto o político com mandato eletivo, o agente público, não deve fazer nada que não esteja legalmente permitido?!". É, o tal do tsuname e essa inclinação do eixo da Terra mexeram com muita gente e ainda vão dar o que falar. Até quando, meu Deus, estaremos sujeitos aos caprichos da mãe Gaia (ou seria Géia?). Enquanto isso, o negócio é procurar o galho mais alto ou encomendar uma arca, ou mesmo uma canoa de voga. Vai que vem aí o Dilúvio II...
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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