Reconheço que sou um pouco conservador, no que diz respeito à ordem espontânea, ou seja, ao conjunto de soluções aprendidas ao longo do tempo. Uma ordem que não foi imposta por ninguém, mas que nasceu das relações de convívio de uma comunidade. Isso não quer dizer que rejeito mudanças. O mesmo não posso dizer de alguns amigos meus que são teimosos e até mesmo radicais na conservação de certos costumes tradicionais do ordenado e extinto mundo caiçara. São tão aferrados a certas práticas que acabam se dando mal. É o caso do Julinho. Outro dia, fui informado que ele vive procurando o Marino para colocar a coluna no lugar. Tudo por causa do anacrônico costume de correr atrás de galinhas que ele cria no quintal (quintal que ele, como caiçara conservador, chama de terreiro). Seria muito mais fácil dar um pulo no açougue mais próximo e comprar um desses frangos resfriados, mas ele não quer saber e insiste em correr atrás das bichinhas. O que ninguém sabe é que as galinhas do Julinho são ligeiríssimas e dizem até que há uma que vive lhe dando um baile danado. É a Daiane. Corre pra lá, corre pra cá. Pula. Dá piruetas. Tem salto mortal simples, tem o duplo carpado... Um azougue, a Daiane. Resultado? Coluna fora do lugar. Não é à toa que o almoço na casa dele sai tarde. O feijão e o arroz esfriando na panela em cima do fogão e o Julinho lá no terreiro, correndo atrás da mistura... O Marino diz que não agüenta mais colocar a coluna do Julinho no lugar. E olhe que o Marino é craque nisso. Pouca gente sabe que o Marino aprendeu a colocar coluna no lugar certo depois de observar anos a fio um tamanduá cego, que ganhou, quando ainda era um menino franzino e cabeludo, de presente do amigo Vladimir. O tamanduá vivia abraçando tudo o que encontrava pela frente. Se fosse torto, ficava retinho, no prumo. Até os cachorros passaram a andar só nas patinhas de trás, empinadinhos, que nem gente. Eu, de minha parte, pensei em sugerir ao amigo que, em vez de ficar correndo atrás das galinhas, usasse a técnica que o Toninho aplicava quando moleque, por sinal um moleque perverso que só o capeta, para roubar as galinhas do quintal da tia dele - miolo de pão ou caroço de milho espetado no anzol de uma vara de pescar. Depois, desisti da sugestão porque o Julinho detesta crueldade desse tipo. Essas coisas só acontecem mesmo em Ubatuba e, na maioria das vezes, com amigos meus. Fico imaginando o trabalho que o Marino terá se o Julinho cismar de criar porcos no quintal para garantir o lombinho ou o torresmo... Julinho, meu amigo, os tempos são outros. Experimentai de tudo e ficai com o que é bom, diz o Apóstolo. Às vezes, é preciso deixar a tradição de lado e aceitar a modernidade. Até o pessoal que pega guaiá na costeira não assovia mais. Estão usando aqueles aparelhinhos de mp3 ou de mp4! É a modernidade Julinho. Deixe a coitadinha da Daiane em paz.
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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