No começo do ano, colocaram um convite, anônimo, na caixa do correio aqui de casa, para um evento que aconteceria da Praça BIP, no bairro onde moro. Guardei-o dentro de um livro, como marca-página. Encontrei-o agora. É um convite bem simplezinho, em sulfite, rodado em PC doméstico, que diz entre outras coisas: "Você não pode perder a CRUZADA DE FÉ E ESPERANÇA. Vamos juntos fazer uma grande corrente de fé e esperança pelo bem de Ubatuba. CRUZADA DE FÉ E ESPERANÇA - dia 4 de março, quinta-feira, às 19h30, na PRAÇA BIP". Não fui à tal cruzada. Não porque não quisesse o bem de Ubatuba, do povo ubatubense. Muito pelo contrário. É que pendurei, já faz algum tempo, a armadura, o escudo, a lança e a espada. Nem o rocinante tenho mais. Perdi o entusiasmo para combater em cruzadas. Mesmo que fosse para resgatar novamente Jerusalém dos mouros ou dos muçulmanos hereges. Deixo essas pelejas para as novas gerações. Não tenho mais fé nem esperança de que, pelas mãos de nossos gestores ou de um deus ex-machina, Ubatuba consiga ser novamente um lugar aprazível, confiável e seguro de se viver. Deixei de querer transformar o mundo, de querer aqui na terra o reino da justiça, da igualdade, da fraternidade etc. e tal. Aquele papo socialista, entende? O Reino que busco é outro e se constrói a cada dia em cada ato de amor, de caridade que cada um possa fazer a seu próximo, mesmo sendo ele samaritano ou taubateano. Não fui à tal cruzada de fé e esperança pelo bem de Ubatuba, nem lhe acompanhei os resultados. Essas cruzadas, essas propostas para resgatar Ubatuba ou, melhor dizendo, para o bem do povo ubatubense, me cheiram mal. Tudo começa e acaba em eventos, em festividades, circo para o povo incauto e oratória ordinária para enganar trouxa. Administrar Ubatuba, já se tem dito, é uma outra espécie de cruzada que procura conciliar e atender interesses vários, e muito deles escusos, ambições personalistas de variegadas e adiposas mesquinharias. Essa cruzada, se não teve sucesso, talvez se deva ao local do evento - a Praça BIP. Para quem não sabe, o BIP, Benedito Inácio Pereira, foi um funcionário público municipal exemplar e que é lembrado também pelos cartazes que fazia para os filmes exibidos no também extinto Cine Iperoig. Nas horas vagas, o BIP era um excêntrico e um filósofo, adepto do relativismo. Para ele tudo era relativo. Exceto essa asserção. Posso vê-lo, com seu riso sardônico, espalhando perdigotos em seus interlocutores, cutucando-os ou agarrando-lhes o braço para lhes chamar a atenção e reforçar seu aforismo predileto: Tudo é relativo, meu caro! Como Sócrates, não nos legou nada por escrito de sua paradoxal filosofia. Um peripatético naquela Ubatuba pacata, em que o Bar do Kilim era a última ágora para nossas libações noturnas e onde sempre topávamos com o BIP, já inebriado com o néctar, com as degustações da ambrosia da Fazenda Velha, a difundir o seu relativismo praiano. Naqueles tempos, ainda valia a pena entrar numa cruzada, mas hoje, e ainda por cima com o espetáculo marcado para a Praça BIP... Não pode dar certo, e a gente fica achando que isso tudo é muito, muito relativo.
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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