Luiz Moura | |
A criançada há muito que tava de queixo caído e olhos arregalados, com as estórias de vovô. - É mentiiiiira Rita??? Vovó, que estava de cochilo em sua cadeira de balanço, se viu encurralada pela criançada que queria saber se era verdade ou mentira o que vovô tinha contado. Indagações e mais indagações!!! A ova de tainha já tava cheirando no brasido. Antes de responder aos netos sobre a história de vovô, vovó arrumou o jantar da criançada. Farinha de mandioca com ova de tainha, batata doce, mandioca e café de cana foi o que acalmou a criançada. Aquela briga de São Jorge contra o dragão, na lua, ainda estava a um quarto do céu. Nem sono, nem resmungo; a criançada não arredou pé da beira da taipa. Três foram pra junto de vovô e o resto ficou amontoado aos pés da cadeira de vovó, parecendo galinha de pinto. Vovó olhou para o vovô num olhar de quem diz: “Você me põe em cada enrascada, velho?!” Mas não titubeou e confirmou a história de vovô: - É verdade! Isso aconteceu com seu avô! Aquilo que Netuno falou, que a Ilha ia se transformar, mudar de nome e jorrar sangue; aconteceu como um relâmpago! E assim vovó passou a narrar fatos verídicos de uma história com H. - Em 1904 um pequeno navio ancorou no largo da Ilha; era o navio do Dr. José Cardoso, secretário do Governo do Estado que decidiu fazer da ilha uma colônia penal correcional, um presídio para aprisionar os mais perigosos criminosos do Brasil. E assim o fez... Declarou a Ilha de utilidade pública. Meu pai morava lá, e assim, como os Cabral, os Graças, os Pinhos, os Góis e outros, contrariados, tiveram que sair; lhes deram uma mixaria e foram morar espalhados pela Enseada, Perequê-Mirim e Saco da Ribeira. No mesmo ano, com projeto do arquiteto Dr. Ramos de Oliveira e construção de Dr. Luiz Antonio Teixeira Leite, deu-se início as obras do presídio. Com capacidade para trezentos detentos, em 1908, o presídio se concretizou, onde ergueu-se uma pedra comemorativa com a inscrição: “Colônia Correcional do Porto das Palmas”. Em 1914 a colônia foi desativada... Vovó, agora animada continuava. - Depois, em 1926, chegou um monte de gente estranha falando uma língua, que mais parecia fala de baitaca no cacho de coco, do que gente; eram russos que o governo paulista enviou para a Ilha; desses, morreu mais de cem, envenenados com mandioca brava de fazer farinha, tiradas das roças abandonadas dos caiçaras; com isso o governo mandou-os de volta à sua pátria. “Ilha dos Porcos” era um nome de cunho pejorativo, mas que durou até 1934. Foi aí, por sugestão dos deputados Cincinato Braga e Manoel Hypólito do Rego, que a Ilha passou a se chamar “Ilha Anchieta”, em comemoração ao quarto centenário de nascimento de Padre José de Anchieta, e o presídio como “Instituto Correcional da Ilha Anchieta”. Estava feita a profecia, a Ilha mudou de nome! Os três que tinham ido para a rede, junto de vovô, já se encontravam em sono profundo. O cachimbo de vovô soltava fumaça feito chaminé de trem. Era bom, porque afugentava os mosquitos micuim. - Vão dormir crianças que amanhã eu conto o resto! - Falava vovó. Mas que nada, a criançada em seus pés queria saber do sangue que ia jorrar. Vovó então continuou. - Os presos foram chegando... Certa vez, isso em 1945, chegou na Ilha um bando de japonês, eram presos políticos de um grupo chamado Shindo Romei; ideologistas japoneses que executavam seus compatriotas, aqui no Brasil, por considera-los amigos dos brasileiros e, por conseguinte, traidores do Japão. Esses japoneses eram muitos bons e trabalhadores, transformaram o capim melado e o sapezal da Ilha em verduras e legumes. Pronto, acabou a história! Agora vocês vão dormir que já é tarde! - E o sangue vovó, e o sangue? - Insistia a criançada. - Conta velha, conta que falta pouco. - Interveio vovô. Não tendo como se safar, vovó continuou com seu relato. - O sangue veio no dia 20 de junho de 1952. Tinha mais de quatrocentos e cinqüenta presos na ilha, muitos deles eram bons e trabalhavam para manter a organização e o conforto do presídio. Uns faziam comida, outros cuidavam da limpeza, tinha os que eram servos nas casas dos servidores e tinha também a turma que cortava lenha nas matas das redondezas. Foi nessa história de corta lenha que o sangue jorrou. O preso de apelido “Portuga” foi quem elaborou todo plano da rebelião para fugirem do presídio da Ilha. Reunido com: João Pereira Lima, China Show, Gerico, Ildefonso, Mocoroa, Sete Dedos, Diabo Loiro, e outros dos mais perversos bandidos do país; Portuga revelou seu plano... No dia 20, mais de 100 presos saíram para transportar a lenha já cortada no dia anterior, tendo como escolta, apenas dois soldados e dois funcionários do presídio. Diante da amizade e descontração que foi cuidadosamente planejado entre os presos para com os policiais, em certa hora, Pereira Lima, retirou o fuzil do soldado, e assim o motim começou. Lá na mata, mataram os dois soldados, amarraram os dois funcionários e se dirigiram para o presídio. Com as armas de fogo dentro de feixes de lenha, passaram, como sempre, em frente ao quartel, onde em golpes súbitos atacaram, atirando e matando os policiais que faziam a guarda. Foi aí que o sangue começou a jorrar, dominaram a sala de armas e tomaram conta de tudo. Muitos soldados morreram tentando defender o quartel e muitos outros foram mortos apenas por vingança ou satisfazer a sede assassina de matar. A vitória dos presos foi completa. “Em meio a todo aquele massacre, uma voz se fez ouvir: “Se eu souber que uma mulher ou criança foi maltratada, o autor terá morte pelas minhas mãos”. Era o chefe da rebelião, João Pereira Lima, falando alto para todos ouvirem e ainda acrescentou: “Nosso fim é a fuga...” Esperavam o barco Ubatubinha que traria mantimentos, mas não apareceu... Sabendo que aquela história não ia ficar assim, alguns do comando de Pereira Lima fugiram no “Carneiro da Fonte”, que era a lancha da ilha, rumo à praia de Ubatumirim. Nesta travessia muitos presos foram jogados ao mar para aliviar a embarcação. Outros presos fugiram de canoas onde ganharam as matas e serras de Ubatuba. - É meus netos - continuava vovó - foi a maior rebelião do mundo; foi preciso a Polícia Civil, Marítima, Polícia Militar de São Paulo e Fluminense, além da Marinha, Exército e Aeronáutica, para capturar e acabar com a rebelião. O balanço dessa tragédia foi que fugiram 129 presos, sendo 108 recapturados, morreram 18 presos, 8 policiais, 2 funcionários civis. É meus netos, em 1952 eu tinha a idade de vocês e presenciei todos aqueles tiros, gritos, sangue e mortes! Foi a mais sangrenta rebelião do mundo. Eu estava lá! Os olhos de vovó estavam umedecidos em lágrimas, só não rolavam para não causar tristeza maior nas crianças. Aquela história era comovente e para que as crianças não fossem dormir com aquela impressão de horror e sangue, vovô chamou a atenção das crianças contando sobre a nova fase da Ilha Anchieta.
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