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COLUNISTA
Julinho Mendes
18/05/2010 - 14h00
Memórias de uma figueira
 
 
Arquivo JCM 

Mamãe morrera de velhice, mas deixou minhas doze irmãs. Éramos muito unidas, vivíamos sempre juntas... Na infância quase perdemos uma de nossas irmãs, Amélia, a mais nova. Um veado comeu-lhe os braços, mas conseguiu sobreviver... Na adolescência já sobressaíamos sobre as demais e éramos ainda mais felizes, pois todas enxergavam todas. Ficamos adultas e por muito tempo continuávamos felizes. Lembro-me do canto das arapongas, das baitacas, dos surucuás... Macucos, jacus e urus, dormiam em nossos braços. Um dia um tucano trouxe lá das bandas do Jundiaquara uma semente de jatobá e largou ali bem pertinho de nós; brotou e rapidamente cresceu. O jatobá não podia ouvir o coaxar das pererecas que ficava todo afoito, pois sabia que dentro de um a dois dias viria chuva e ia crescer um pouco mais. Cresceu formoso até o ponto de não me deixar mais ver o cantinho da praia do Itaguá... Fiquei triste, mas me acostumei.

Vi brotar mais ao norte, não sabia bem o que era; não se mexia nem com noroeste, nem com sudoeste... era diferente, mas muito bonita. Na parte alta era vermelha, meio alaranjada, depois ficou escura. O branco e azul, às vezes ficavam desbotados, mas sempre se renovam e permanecem até hoje. Bleeeem bleeeem, bleeeem bleeeem, bleeeem bleeeem... era a única que produzia um som melodioso a ecoar pelo ar... Cresceu outra, ao lado, bonita também, cor-de-rosa com azul, mas não fazia o blem blem blem.

A partir daí começamos a nos sentir ameaçadas e logo a primeira fatalidade veio a nos acontecer. A duros golpes, Rosália faleceu, depois Amélia, Glorinha, Fernanda, Júlia. Mais tarde vieram a falecer: Maria José e Aurora. Mortes pior tiveram Ana Maria e Josefina, tiraram-lhes do seio da terra e deixaram morrer de sede. Iracema teve mais sorte, tentaram preservar sua vida ao máximo, mas sabíamos que sua vida estava por pouco... não tardou, abraçada com Juvenal, um velho indaiá, também se foi; estes morreram não faz muito tempo lá no meio da Rio Grande do Sul, um pouco depois da esquina da Mato Grosso.

Voltei a ver o cantinho da praia do Itaguá pois o jatobá também morrera...

Entendo o calor do verão, o frio do inverno. Entendo a rajada dos ventos e os raios que precedem os trovões. Às vezes entendo até o progresso... Só não entendo a fúria da ganância dos homens!!!

Ainda restam: Bernardina, que mora lá no caminho do Perequê-Açú onde ficava a casa do Sidônio e a Georgina que mora lá na Prainha do Matarazzo. Estas estão mais seguras do que eu!!! Estão elas muito longe de mim, já não as vejo mais, pois as árvores de pedras nos tiraram a visão... perdemos total contato.

E eu??? Eu ainda estou aqui, na Cunhambebe, em frente à casa da Alcina do Isaias Alfaiate, resistindo ao tempo, ao progresso, a poluição, ao efeito estufa... Estou aqui até não sei quando, mas com certeza tenho vontade e força para viver por mais cem ou duzentos anos. Estou feliz, muito feliz!!! Os pássaros continuam a me visitar, as bromélias continuam sendo casa de pererecas e nunca me deixaram; samambaias, orquídeas e outras parasitas sempre me fizeram companhia... Não sinto solidão! Sempre tive a companhia das crianças... As crianças sempre fizeram parte da minha vida. Julinho, Marcinho e Helinho do Isaias; Zezinho, Olinda, Eliseu e Flávio do Ximinguinho; Nivaldo e Elenice do Domingos Mariano; Isaias, Nenê e Mamaco do Valmor; Luiz Carlos (Nacuia), Cida, Fernando e Emerson do seu Aquino; Antenor, Manequinho e Celso do seu Oscar; Carlito, Fatinho e os demais filhos do Boca Rica; Eliseu e Elias da dona Cacilda; Mesquitinha, Vicente, Dedé e Toninho do Zé Tibúrcio; Cícero, Sérgio e Eugênio do Trianon; Celsinho do Dominique e o Silvinho Brandão (hoje vereador) e ainda muitos outros daquela época; foram crianças que brincavam ao meu sombrear e que hoje são homens e que se esqueceram de mim.

Não faz mal, muitos esqueceram de mim! Aliás, gerações e gerações!!!

As crianças permanecem, hoje tenho mais crianças ainda, ou melhor, hoje tenho uma ALDEIA, uma TABA de crianças.

Enquanto houver crianças serei feliz. Enquanto houver crianças terei a certeza de minha existência. Enquanto houver crianças sempre hei de ser UMA GRANDE PRINCESA, porque as crianças são puras e entendem muito mais que os adultos a importância da vida de uma árvore.

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