Julinho Mendes | |
- Aqui farei o teu berçário. Irás criar e procriar, povoar e repovoar. Serás o pão, o trabalho e a vida do povo brasileiro e levarás, por onde quer que andes, a imagem de Nossa Senhora! Acho que foi isso que Deus falou para a tainha, quando a colocou no mundo, ou melhor, no Brasil, porque a tainha, acredito eu, que seja peixe unicamente brasileiro. O berçário maior é a grande lagoa existente no Rio Grande do Sul, chamada de Lagoa dos Patos; é lá que ela cria e procria, é de lá que ela repovoa o mar, dando trabalho e servindo de alimento para o povo brasileiro. Mês de maio vinha chegando... Seja picaré, tróia, tresmalho, tarrafa, rede de cabo... O caiçara já estava preparado, sabia ele que dia menos dia elas iriam chegar, bastava apenas três dias de forte sudoeste. Assim acontecia e na calmaria já se via os saltitados e os refolhados das tainhas. Canoas, remos e redes, equilíbrio, força e coragem; começava o trabalho, a luta e a labuta. No final a vitória, a recompensa, o alimento. Eram milhares de tainhas pescadas. Tainha é peixe sagrado, porque traz em suas escamas a imagem de Nossa Senhora. Papai me conta que quando vovô Antonio Mendes saía para pescar tainhas, vovó Bertolina pegava seu terço feito com escamas de tainhas e punha-se a rezar. Um dia deram um lanço de nove mil tainhas... Apertava o umbigo da tainha, se tinha ova ficava de um lado, se não, do outro lado. Das maiores aproveitava apenas a ova, os restos enterrava no jundu. Das menores, aproveitava o piruã, o gorgomilo e escalava deixando secar ao sol, muito bem salgado. As ovas também secava e guardava em latões de banha; o piruã e o gorgomilo serviam de ingredientes no azul marinho e o que sobrava, secava em cima do fogão de lenha, para ser consumindo durante o resto do ano. Assim o caiçara crescia forte e saudável. A pesar dos grandes barcos pesqueiros aparelhados com os mais modernos equipamentos de pesca, que cercam a saída da lagoa; passa maio e meado de junho, ainda chegam aqui algumas tainhas, e aqui estamos com nosso picarezinho tentando pescar algumas delas. Pescamos em média, na temporada da tainha, umas cem. Dessas cem tainhas, saboreamos de todos os jeitos: frita, cozida com banana verde (azul marinho), seca com banana madura (amarelo marinho), “sá preso” (salgada de um dia para o outro e cozida com tempero caseiro), assada na brasa com sal grosso, assada na brasa embrulhada na folha de bananeira... E a ova? Que delícia que é a ova, quando assada na brasa e misturada com sopa d’água, ou ainda frita e saboreada com farinha de mandioca torrada e café!!! Mamãe precisou se ausentar de casa por motivos médicos, durante uns cinco dias; ficara em seu lugar, uma senhora muito solidária e prestativa que nos ajudou na limpeza da casa e nos afazeres do almoço. Chamávamos de dona Meire, uma italiana que, como tal, cozinhava fantasticamente... Tinha na geladeira um macuco e três ovas de tainha. O macuco (galinácea da família dos tinamídeos), papai semana antes havia caçado, já estava limpo e cortado em pedaços; as ovas eram das tainhas que dias anteriores pescamos... A chefe da cozinha naqueles dias era Dona Meire que, para fazer uma macarronada, canelone, nhoque, lasanha, não tinha ninguém igual a ela. Querendo mudar o cardápio e nos fazer uma surpresa para o almoço, não consultou ninguém; ao ver na geladeira o macuco e as ovas de tainha, descascou oito batatas, preparou o cheiro-verde e fez aquele cozido, misturando pedaços de macuco com ova de tainha... Contente por tal façanha arrumou a mesa e foi cuidar da sua casa... Papai chegara com fome de leão, tomou uma pinguinha, preparou o feijão com arroz e foi direto na panela da mistura; aí eu só ouvi o grito: - Juliiiiiinho o que é iiiiiisso! - O que foi papai? Quando eu vi no prato pedaço de macuco com ova de tainha, não agüentei e caí na gargalhada... Papai ficou puto da vida, passou a mão na panela e pregou no mato com tudo... - Aonde já se viu comer macuco com ova de tainha, só se for na Itália!? - E daí Isaias, gostou da surpresa que eu fiz para o almoço? - perguntou dona Meire que voltara. - Gostei tanto que comi tudo, lambi até a panela!!! - exclamou papai, que naquele dia comeu pão com ovo frito.
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