A mesa do caiçara sempre foi farta. A fartura era de produtos plantados pelas próprias mãos, às vezes caçados nas redondezas das matas, às vezes pescados no lagamá da praia, na costeira ou no largo. Produtos “in natura” ou preparados eram fartos na mesa do caiçara. Os alimentos comuns... o feijão mexido com farinha de mandioca e arroz; o café adoçado com caldo de cana acompanhado com farinha de milho, batata doce e mandioca cozida; o escaldado de peixe ou tatu ensopado; o caiçara preparava curiosos pratos, como por exemplo, o prato criado por vovó Malvina em seu período gestante. O peixe era farto, mas tinha época que o mar não estava para peixe, às vezes “ressacado”, às vezes manso demais, o peixe sumia. Muitas vezes também, devido os trabalhos na roça e querendo aproveitar a época de plantio, o caiçara não ia pescar. Vovó Malvina estava grávida de seu primeiro filho e certo dia, numa madrugada de tempestade com vento sudoeste bravo, sentiu um desejo; um desejo até que comum e que estava cansada de preparar e saborear; queria ela comer um pirão de peixe com banana. - Acorda Lindolfo! - O que foi Malvina? - Tô com vontade de comer pirão de peixe com banana! - Aonde que eu vou arrumar peixe numa hora dessa, mulher; além do mais já faz uma semana que o mar tá ruim e não tem peixe nem para remédio!? Coentro de folha, salsa e cebolinha era mato no quintal. Farinha de mandioca tinha à vontade. Um cacho de banana nanica se debruçava na varanda. Limão-cravo e pimenta-de-cheiro também eram coisas que não faltavam em terreiro de caiçara. - Vou fazer um pirão! - Levantou-se decidida vovó Malvina. Ascendeu a lenha no fogão, preparou os ingredientes que tinha em mãos e pôs água pra esquentar. Tava tudo ali: o coentro, a salsa, a cebolinha, a banana verde, a farinha, o limão-cravo e algumas pimentas-de cheiro; faltava apenas o peixe. Não teria graça comer pirão sem ter o principal que era o peixe. Não se abateu por causa disso e logo deu um jeito na situação; lembrou que tinha ovos no galinheiro. Foi o que fez, ascendeu a lamparina e foi ao galinheiro apanhar os ovos. O fogão já cuspia fogo pelas frestas. Numa boca a água já tava de pulo na chaleira e na outra boca, vovó pôs a bunda da panela para fritar os ingredientes. O cheiro do tempero espalhou pela casa e entrou no quarto onde vovô Lindolfo roncava que nem roncador em fundo de canoa. Parecendo que hipnotizado, vovô Lindolfo levanta-se da cama e caminha, levado pelo cheiro do coentro, em direção a luz da cozinha. - Comendo pirão a uma hora dessas Malvina? A onde você arrumou o peixe? - Perguntou vovô. - Pesquei no galinheiro! - Respondeu vovó toda satisfeita. Vovô abriu a tampa da panela e descobriu o tipo de peixe que vovó tinha preparado o pirão. Eram “olhudos”, que boiavam em meio ao coentro, salsa, cebola, pimenta e banana verde. Existe o peixe chamado olhudo ou olho-de-boi, mas o “olhudo” em questão era ovos de galinha casada que vovó preparou aquele pirão. Não deu outra, três horas da manhã, lá estavam: vovô Lindolfo e vovó Malvina se empapuçando com pirão de ovo. Fica aqui registrado o curioso e saboroso prato da culinária caiçara, tipicamente ubatubano, o “pirão de ovo”, herdado de vovó Malvina e ensinado pela minha mãe Alcina Pereira Mendes, que de lambuja ensino o modo de preparo: É a mesma coisa que preparar o “Azul marinho”, só que em vez do peixe, vai o ovo, seja de pata ou de galinha. Frite em panela os ingredientes acima citados; acrescente água pré-aquecida e em seguida coloque as bananas verdes, meio descascadas. Deixe as bananas amolecerem e em seguida acrescente os ovos, sem as cascas. Deixe-os endurecer e está pronto. Em vasilha separada, coloque a farinha de mandioca e jogue o caldo fervendo, fazendo aquele pirão escaldado. Realce com pimenta e limão e se empapuce com o “pirão de ovo”. Conte vantagens aos amigos, dizendo que você comeu pirão de “olhudo”.
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