A minha cidade natal está comemorando 372 anos de emancipação política. Todos nós sabemos o papel significativo que Ubatuba representou na história do Brasil. Sabemos também de seus ciclos de riqueza e de decadência. Na década em que nasci, na metade do século XX, o município começava a despertar do coma a que o fim do Ciclo do Café lhe induzira. Havia, então, alguns vestígios do período áureo, algumas ruínas arquitetônicas e as poucas famílias que aqui permaneceram, que resistiram à emigração para lugares mais prósperos e auspiciosos como Santos, São Paulo e Rio de Janeiro. A população de Ubatuba, na época em que nasci e até a década de 80 do século passado, tinha fortes laços de identidade: éramos ubatubanos, caiçaras, paulistas, e sentíamos orgulho e, em muitas pessoas, um certo bairrismo dessa circunstância. Já comemorei dezenas de aniversários desta cidade. Lembro-me dos tempos em que era aluno do grupo escolar Dr. Esteves da Silva e, depois, do ginásio Capitão Deolindo, dos ensaios para os desfiles cívicos comandados pelo professor Joaquim Lauro, que orientava a marcha da rapaziada ao ritmo de uma fanfarra de poucos e velhos instrumentos e de muito entusiasmo. No ginásio, fui escalado pelo diretor, o professor Celestino Aranha, para desfilar com a bandeira de Ubatuba, recém-criada por duas colegas de classe num concurso promovido nas salas de aulas pelos professores de desenho. Nesta época de comemorações penso na relação que sempre mantive com esta cidade, desde a infância, uma relação feita de momentos de amor e ódio. Uma relação ora de mãe e filho, ora de madrasta e enteado. Alimentou-me de alegrias e também de sofrimentos. A minha cidade está em mim como a seiva numa árvore. Quando me pergunto quem sou, ela está presente no cerne de todas as respostas. Cenário de minhas venturas, palco de meus dramas e de minhas comédias. Confidente de meus sonhos e fantasias. Sou um privilegiado. Sou grato pela infância e juventude que ela me proporcionou. A proximidade com a natureza e o convívio com minha gente, com suas crenças e tradições, com esses personagens que direta ou indiretamente contracenaram comigo e que são os ingredientes essenciais daquilo que sou, desse meu filme que já passou da metade, mas que, graças a Deus, continua... Carrego-a comigo onde quer que vá, pelo lado de dentro. Um caracol às avessas. Posso sentir em meus pés suas ruas de areia, cheias de buracos dispostos para as bolinhas de gude e para as poças d’águas dos aguaceiros de verão que serviam de espelho à lua e à via Láctea, nos tempos em que as noites ainda não haviam sido defloradas pela iluminação da CESP. Sinto em meus pés a friagem da areia da Praia do Cruzeiro quando, na alvorada, ainda menino, ajudava a puxar pelos cabos, feitos de imbé, as redes de arrasto dos velhos pescadores como o Dócio e o Alfredo Vieira, com o intuito de ganhar alguns camarões que me serviriam de iscas para pescar na costeira da Prainha. Esses pescadores, além de meu pai, ensinaram-me os nomes dos peixes, as manhas dos peixes, a influência da lua, dos ventos e das marés no comportamento dos seres. Quando hoje vejo meu neto brincando com joguinhos on-line no computador, penso logo nos terrenos baldios, nas ruas que haviam sido feitas sob medida para nós, a garotada, para os jogos de taco, para as brincadeiras de soldadinho-salvo e as de cowboy, as de mocinho e bandido, imitando os personagens dos filmes e seriados que assistíamos nas matinês do Cine Iperoig, dos revólveres de mentirinha, feitos com raiz de ciosa, dos jogos de bafo com figurinhas de jogador de futebol. As portas das casas ao rés da ruas não tinham as neuroses das fechaduras e as crianças eram reconhecidas e bem acolhidas em todas as casas. Ah, esse aí é filho de fulano. Chegue pra tomar um café, meu filho. Naqueles tempos tinha a impressão de haver uma segunda mãe nas casas de meus amigos, e a gente se sentia seguro nesse mundo. Mas como comemorar a Ubatuba de hoje? A Ubatuba que faz 372 anos de emancipação política, mas que continua sob a tutela da insegurança e refém das necessidades mais elementares a que uma cidade que se quer aprazível, em pleno século XXI, não poderia se permitir. Como comemorar? Talvez sonhando e torcendo para que as novas gerações sejam mais exigentes, comprometam-se mais e arregacem as mangas para melhorar a qualidade de vida de todos, porque, para piorar, já temos gente demais, e especializada. Parabéns, Ubatuba. E parabéns também ao “Ubaweb - O Guaruçá” que comemora 12 anos de existência e que é fruto dessa cultura, desse modo-de-ser ubatubano, que, dentre outras coisas, adora uma pilheria e não leva desaforo pra casa. Parabéns!
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
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