Há dias ele vinha insistindo para que lhe desse uma pipa. É o tipo do sujeito persistente e já sabe manejar argumentos com maestria. Tem só 4 anos. Conseguiu a pipa e depois ficou no meu pé para que fôssemos empiná-la. - Mas por que não dá, vovô? - Porque está chovendo. Não tem vento. Você pode ficar resfriado... Criança dentro de casa em dias de chuva é complicado. Ele no meu pé, insistindo. Eu, botando obstáculos, sugerindo joguinhos on line no computador, DVD com desenho animado, e ele nada. Já estava perdendo a linha - não a da pipa, mas a da paciência - quando veio a tarde e depois veio a noite e com a noite o sono e a promessa de que no dia seguinte iríamos empinar a danada da pipa. Pois não é que o domingo amanheceu ensolarado! Um céu de brigadeiro. Mal havia tomado o café da manhã e logo veio a cobrança: - Vamos? - Não tem vento, meu filho. Tá tudo parado. Dá só uma olhada nas folhinhas das árvores. Olha lá. Tá vendo? Todas sem se mexer. Não tem vento. - Tem vento, sim. Vamos! O carretel da minha paciência chegara ao fim. Respirei fundo. Resignei-me e fui. Fomos até um terreno baldio perto de casa. De repente, uma brisa tímida soprou de leste, o bastante para insuflar o ânimo de meu neto, o Luiz Henrique. - Vai, vô! - Então tá. Segura o carretel de linha que eu empino. Na verdade, o carretel era uma embalagem plástica de Toddy que eu improvisara. Um trabalho em equipe. Não demorou muito consegui fazê-la subir. Mas eis que, no alto, o vento aumentou e a danada começou a dar cabeçadas, a piruetar. "Eeeeh, vô! Você não sabe empinar direito!" Resmungou o meu companheiro de empreendimentos aeronáuticos. A rabiola. era pouca. Recolhemos a pipa. Amarrei-lhe, sob protestos do meu co-piloto, um pedaço de plástico, que encontrara no chão, para fazer peso. - Vamos lá. Dá linha! - E a pipa retornou ao céu. E ficou lá no alto, pairando, toda petulante. Foi então que me aconteceu algo inesquecível: ao olhar de soslaio para o meu neto, deparei-me com o mais encantador sorriso no rosto daquele menino. Ele não tirava os olhos da pipa lá no alto. Era a primeira pipa. Ele ali, a meu lado, todo prosa, ornado por aquele sorriso... Como se fosse uma legenda a traduzir em baixo, na contração dos lábios, a alegria de sua alma que se expressava logo acima, por aqueles olhinhos extasiados. Eu, silenciosamente, sorria com ele. Eu queria ser ele e voltar a sorrir assim... inocentemente. É piegas? Não me importa. Até hoje ninguém me tira da cabeça que aquele sorriso e a expressão do olhar do meu netinho foi um momento de epifania. Nem os anjos sorriem assim. Talvez um vislumbre do que nos espera lá no alto, um dia: tardes domingueiras risonhas, eternamente ensolaradas e azuis e então voltaremos todos a ser criança de novo.
Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.
|